Chile: a esquerda que incomoda a esquerda
O novo presidente Gabriel Boric não teve dúvida em deixar claro: se é preciso mudar, que as mudanças venham com autocrítica sincera e fundamental
“Como Salvador Allende previu há quase cinquenta anos, estamos de novo, compatriotas, abrindo as grandes alamedas por onde passam o homem e a mulher livres, para construir uma sociedade melhor. Sigamos! Viva o Chile!” Foi assim, ao lembrar de uma conhecida frase do líder socialista levado à morte pelo golpe militar de 1973, que o novo presidente do país andino, Gabriel Boric, 36 anos, tomou posse. Faz parte de seu governo, aliás, uma neta de Allende, Maya Fernández, ministra da Defesa. O ex-líder estudantil de corpo coberto por tatuagens, e cuja faixa presidencial pediu a um sindicato têxtil feminino, montou um ministério com mais mulheres do que homens. Atraiu lideranças indígenas. Foi celebrado com pompa pela esquerda latino-americana, que vê nele indícios de novos ventos. Contudo, antes mesmo de começar a despachar, virou sinônimo de uma esquerda que incomoda a esquerda. Para vencer nas eleições o ultraconservador José Antonio Kast, Boric teve de caminhar para o centro (entre os seus auxiliares, vários são representantes desse grupo). Sim, ele convidou Dilma Rousseff para a cerimônia inaugural, já disse gostar da ideia de Lula suceder a Bolsonaro, mas também não teve dúvida em deixar claro: se é preciso mudar, que as mudanças venham com autocrítica sincera e fundamental. “Queremos aprender com os problemas que o PT teve. Queremos aprender para que não aconteçam conosco. Os casos de corrupção, por exemplo, que são graves e que, quando acontecem, pedem reação muito firme, para que não se estendam.” Boric, a julgar por esse início, é uma voz que precisa ser ouvida.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781