Carta ao Leitor: Política de boa vizinhança
Goste-se ou não de sua figura, o sucesso de Milei é fundamental para o Brasil
Como convém às democracias, a Argentina foi às urnas em paz. Demonstrou maturidade ao anunciar o nome do presidente eleito de modo rápido, sem margem para teorias conspiratórias, como aconteceu nos Estados Unidos de Donald Trump. O derrotado, o ministro da Economia, o kirchnerista Sergio Massa, antes mesmo do fechamento total das urnas, reconheceu a derrota para Javier Milei, que se intitula “anarcocapitalista”, é anunciado como “ultraliberal” e não esconde as ideias de extrema direita. Foi uma noite louvável, do ponto de vista das instituições. A dúvida, a partir de agora: Milei descerá dos palanques para governar, longe das bravatas e dos cercadinhos, dos palavrões e das redes sociais? O primeiro discurso parecia indicar algum desejo de normalidade. “Quero dizer a todos os argentinos e a todos os dirigentes políticos que todos aqueles que querem somar à nova Argentina serão bem-vindos. Não importa de onde vieram, não importa o que fizeram antes, não importa que diferença tenhamos”, disse. Não demorou, porém, para emitir sinais preocupantes. Reafirmou sua porção “anarquista” ao propor o fechamento do Banco Central e o desmonte total do Estado — embora tenha, também, defendido um vasto, necessário e sensato programa de privatização.
Qual Milei, afinal, presidirá a Argentina? Eis a questão. Dono de cabelos revoltos e fartas costeletas, ele foi eleito como um rotundo não dos cidadãos a sucessivos governos, à esquerda (em maior quantidade) e à direita. Todos foram incapazes de conter a inflação (hoje em 142%) e a pobreza — condição na qual vivem 40% das famílias, como se percebe nas ruas de Buenos Aires. Administrações como as do peronista Néstor Kirchner, de 2003 a 2007, de Cristina Kirchner, de 2007 a 2015, e do liberal Mauricio Macri, de 2015 a 2019, apenas aprofundaram a balbúrdia e a descrença dos cidadãos argentinos no país. E então, contra tudo que sempre esteve aí, surgiu um personagem desconhecido, que mostrará sua cara e suas ideias no cotidiano da Casa Rosada. Pode até funcionar, desde que tenha apoio político, bom senso e não proponha o impossível. Seu fracasso, por outro lado, pode encurtar dramaticamente sua gestão e, por tabela, nos atrapalhar.
Goste-se ou não de sua figura, o sucesso de Milei é fundamental para o Brasil. Ressalve-se que a Argentina é o terceiro maior destino exportador de brasileiros — com 14,9 bilhões de dólares em 2023 —, atrás apenas de China e Estados Unidos. É também o quarto maior importador. Os primeiros passos do tango entre os dois países depois da eleição de domingo, contudo, foram preocupantes. Milei convidou Jair Bolsonaro para sua posse, em 10 de dezembro, anunciou viagens para Estados Unidos e Israel, mas não para o Brasil. Lula, ao parabenizar as instituições argentinas e a “voz do povo”, não citou o nome do futuro presidente. Há tempo para correção de rota. A amistosa convivência entre os vizinhos, no avesso da disputa ideológica, é decisiva para o bom andamento da economia brasileira, para o Mercosul e, claro, para a Argentina, país ferido pela incompetência de seguidos governos. É crucial que nossos hermanos saibam distinguir a realidade do populismo, a verdade das ilusões (nós também, aliás). O escritor Tomás Eloy Martínez (1934-2010), autor de O Romance de Perón, entre outros grandes livros, pôs na epígrafe dessa obra uma frase que ouviu da própria boca de seu famoso personagem, nos tempos de exílio em Madri: “Por esta casa passam muitos argentinos, cada um querendo vender uma verdade diferente como se fosse a única. E o que é que eu posso fazer? Acredito em todos”. Não pode ser assim. A Argentina precisa reencontrar, na estabilidade e na ponderação, uma direção que a levará de volta ao crescimento econômico.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869