Carta ao Leitor: O direito de ir e vir
É triste constatar que a entrada de estrangeiros, que jamais deveria ser condenada em nenhum canto, serve de alimento para a estupidez discriminatória
A caminhada da humanidade nasceu de um fluxo migratório. Há 130 000 anos, o Homo sapiens deixou a África a caminho de Papua-Nova Guiné e da Oceania, e depois em direção à porção do planeta onde hoje está a Europa. Viver fora da terra de nascimento — em busca de comida e paz — é a gênese da civilização. É movimento que ajudou a construir a beleza da diversidade das nações, ainda que a razão dos deslocamentos seja o beco sem saída de quem busca apenas sobreviver ou fugir do jogo viciado da colonização. Os Estados Unidos, construídos em sua origem por ingleses e depois por cidadãos de todas as partes do planeta, são fruto dessa história. O Brasil tem a marca inicial de portugueses, com a chegada de grupos de imigrantes em outros momentos de sua história. Parece não haver dúvida: o mundo é costurado pela rica colcha de retalhos de permanente vaivém, e a única resposta possível a esse balé de lá para cá é respeitá-lo em nome da dignidade humana.
Em decorrência de uma mescla de mazelas econômicas e tremores políticos, os êxodos modernos vêm tomando contornos superlativos e rachando as sociedades embebidas em polarização. Não por acaso, o tema da migração virou peça central no xadrez da sucessão de Joe Biden. O republicano Donald Trump, que nunca escondeu o pendor xenófobo, fez da construção de um muro na fronteira com o México um dos pilares de seu primeiro mandato e slogan da atual campanha. A vice-presidente Kamala Harris, o nome dos democratas para a eleição de novembro, foi designada a seguir de perto o assunto. Espinhoso, claro, por pressupor, ao menos no campo teórico, a perda de votos de americanos que demonstram ojeriza pelo que vem de fora. De fato, a rejeição ao vizinho (na verdade, ao vizinho diferente) é uma realidade americana. Atualmente, os latinos representam 18% da população do país, o equivalente a mais de 62 milhões de pessoas, força econômica irrefreável e necessária, mas muitas vezes discriminada.
É triste constatar que a entrada de estrangeiros, que jamais deveria ser condenada em nenhum canto, serve de alimento para a estupidez discriminatória, como se viu na temporada de Trump na Casa Branca. Recentemente, aliás, o pleito para o Parlamento Europeu elegeu um imenso contingente de deputados na contramão da bonita ideia de unificação — o que eles pretendem é erguer grades, dificultar a acolhida, em passos que ecoam em países como a França e a Itália. Ironicamente, muitos que hoje espalham esse ódio se esquecem de que seus antepassados também não nasceram naquelas nações. Foram tentar a sorte e por lá ficaram. No Brasil, o tom é diferente — embora despontem ruídos em torno da chegada de mais de 30 000 venezuelanos atingidos pela derrocada imposta pelo regime de Nicolás Maduro.
O acolhimento não pode ser segregativo. Como mostra reportagem da edição, o chauvinismo é atalho para o radicalismo, para o desrespeito aos direitos humanos. O escritor e poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) pontuou o perigo: “Da pequena faísca pode surgir uma chama poderosa”. Foi o que vimos, para ficar com apenas um exemplo, na eclosão do nazismo de Adolf Hitler. Ele elegeu os judeus, a maioria com ascendência de muitas gerações na Alemanha, como inimigos da nação ariana. Deu no que deu. O melhor é olharmos para o lado bom de casos como o do Brasil, país que na virada do século XIX para o XX abrigou italianos, alemães e japoneses, o cimento para uma sociedade mais rica, tanto do ponto de vista da economia quanto da cultura. O direito de ir e vir é inalienável.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907