Câncer de Kate e do rei Charles III revela rachaduras na monarquia
A dúvida é se ela vai emergir das atribulações enfraquecida ou mais resistente ainda
Em um inusitado vídeo de pouco mais de dois minutos, Catherine, a princesa de Gales e futura rainha do Reino Unido, revelou aos súditos e ao mundo que tem câncer e acaba de iniciar sessões de quimioterapia. Semanas antes dela, o rei Charles III havia divulgado, por meio de um comunicado do Palácio de Buckingham, que também sofre da doença e está em tratamento. A sequência de más notícias sacudiu os alicerces da monarquia britânica como poucas vezes se viu nos tempos modernos — a última, com potência de bomba nuclear, foi o fim trágico de Diana, aos 36 anos, vítima de um acidente de carro, em 1997. Custou, mas o trauma da morte da “princesa do povo” e da reação inicialmente insensível da casa real foi superado sem exigir grandes mudanças em seus modos e costumes. Desta vez, porém, a máquina de moer omissões e apelos à privacidade das redes sociais operou uma transformação no mote “nunca reclamar, nunca explicar”, ao qual Elizabeth II se apegou ferrenhamente nos setenta anos de reinado. Explicar, pelo menos, foi — e será — preciso.
Faz sentido que a família real tenda a, diante de um problema, fechar-se em copas e esperar o burburinho passar, já que a aura de indivíduos acima dos dramas comezinhos do cotidiano está no cerne da sua preservação. Mas o desaparecimento de Kate por dois meses, em seguida a uma pouco explicada “cirurgia abdominal planejada”, desencadeou um frenesi de especulações absurdas. Uma foto da família feliz supostamente tirada por William provou ter sido manipulada (em detalhes bobos), o que só piorou as coisas. Na hora de anunciar o diagnóstico de câncer de Kate em exames pós-cirurgia, cogitou-se soltar um comunicado, como fez Charles, ou postar mensagem na rede social dela. Segundo as onipresentes “fontes próximas”, foi a própria princesa quem resolveu sair da reclusão, maquiar-se, pentear-se e, diante das câmeras (uma equipe da BBC foi convocada, para não dar vez a boatos), explicar que não, não estava se divorciando, nem sofrendo um colapso nervoso, nem se recuperando de uma cirurgia plástica. Tinha câncer.
Choveram imediatamente manifestações de solidariedade e pedidos de desculpas de celebridades que fizeram piada com o sumiço da princesa. As condições de saúde dela e de Charles, devidamente comunicadas ao público (embora não se saiba até hoje que tipo de câncer têm), devem angariar apoio aos dois e ajudar a reverter as últimas pesquisas, que, pela primeira vez, indicaram que menos da metade dos britânicos (45%) aprova a monarquia. Resta ver se o setor de comunicação da monarquia saberá se equilibrar entre a sede de notícias e a redoma que separa a realeza dos comuns mortais. No caso da princesa, a intenção é clara: “Não vamos compartilhar mais nenhuma informação médica”, declarou um porta-voz. “A busca por privacidade total provavelmente parte de William, traumatizado com o escrutínio de sua mãe, a princesa Diana”, avalia Craig Prescott, advogado especialista em monarquia.
Já Charles mantém a rotina do encontro semanal com o primeiro-ministro, tem se deixado fotografar recebendo visitantes e, se estiver bem, pode comparecer à missa de Páscoa na capela de Windsor. Aparições públicas estão no topo da descrição de emprego da família real. “Tenho que ser vista para que acreditem em mim”, pontificou certa vez a rainha Elizabeth. Por mais que o público simpatize com a situação do rei e da princesa, uma ausência prolongada deles, junto com cortes nas atribuições de William, pode abrir um vácuo por onde escorrerá mais um pouco do prestígio da monarquia — além de extenuar os royals disponíveis. Atualmente, a maratona de inaugurações, viagens e cerimônias é capitaneada pela rainha Camilla, de 76 anos (uma virada e tanto para a bruxa má que, lá atrás, atormentou Diana), assistida pela princesa Anne e pelos duques de Edimburgo, Edward e Sophie. Competentes, sem dúvida, mas sem um décimo do carisma dos príncipes de Gales, o casal mais popular da família, e sem a coroa que legitimiza o soberano. Nesse contexto, fala-se até em uma reaproximação de Harry e Meghan, a dupla que saiu do castelo chutando a porta, revelou detalhes escabrosos das relações familiares e se mudou para a Califórnia. Harry visitou o pai em janeiro, e, após o vídeo, o casal mandou votos de “saúde e recuperação” para Kate.
De todos os segredos que envolvem o dia a dia da realeza, o estado de saúde é, historicamente, um dos mais preservados. “Sempre houve reticências sobre o assunto”, diz Bill Kuhn, biógrafo da Casa de Windsor. Na Idade Média, a preocupação era de ordem prática: abrir o jogo quando um monarca estava debilitado poderia levar até a uma invasão estrangeira. Com o tempo, esconder enfermidades passou a ter mais a ver com a imagem do monarca impermeável a fraquezas. “Acima de tudo, a nossa realeza deve ser reverenciada. Seu mistério é sua vida. Não devemos permitir que a luz do dia ilumine a magia”, escreveu Walter Bagehot, analista político do século XIX. Em nome dessa magia, os médicos do pai de Elizabeth, George VI, abafaram seu estado de saúde até a morte, em 1952, e jamais proferiram a palavra câncer — seu pulmão esquerdo apresentava “anomalias estruturais”. A mãe dela teve dois tumores removidos secretamente, e a irmã, a princesa Margaret, lutou para disfarçar os efeitos de uma série de derrames.
A durona Elizabeth cultivou a imagem de saúde de ferro — as únicas doenças que teve e comentou foram Covid-19 e “problemas de mobilidade” no fim da vida. As revelações agora, ainda que a conta-gotas, mostram um rei e uma princesa enfraquecidos — mais plebeus, portanto. “A doença aproxima a Coroa do povo, porque torna sua existência tão humana e frágil quanto qualquer um de nós”, avalia a historiadora especializada em nobreza Sue Woolmans. O futuro dirá se a monarquia britânica sairá maior ou menor desse momento aflitivo.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886