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Brasileiros tomam gosto por turismo na neve e são maioria no Valle Nevado

Esquiar nunca é um programa barato, mas a rota em solo sul-americano acaba saindo mais econômica do que em Courchevel, na França, ou em Aspen, no Colorado

Por Valmir Moratelli, do Chile
Atualizado em 4 jun 2024, 10h15 - Publicado em 19 ago 2023, 08h00

A relação do brasileiro com a neve foi sendo estabelecida lentamente no curso da história. O primeiro grande contato com a brancura em paisagem nacional data do século XIX, quando o pequeno município gaúcho de Vacaria registrou uma incidência de flocos como nunca antes nestas terras tropicais, algo em escala digna de ingressar para o livro das ocorrências raras no país. Desde então, às vezes volta a acontecer, sobretudo na região Sul. E assim o elo foi se estreitando, até que começamos a desbravar Bariloche, na Argentina, na década de 1990, época de câmbio ultrafavorável. Aos poucos, os brasileiros tomaram gosto por explorar o cenário nevado a bordo de esquis — a ponto de se ouvir português por toda a parte nas pistas mais badaladas do planeta, dos Estados Unidos à Europa e, naturalmente, na própria América Latina.

Nos últimos invernos, notou-se um afluxo fora do comum de turistas do Brasil nas bandas do Chile, onde eles passaram a representar o maior contingente de estrangeiros no Valle Nevado, a uma hora de carro da capital, Santiago — um cenário que oferece trilhas classificadas pelos entendedores como de “mais alta complexidade” na comparação com as de Bariloche. Incrustada na Cordilheira dos Andes, a 3 000 metros de altitude, fica uma vila formada por três hotéis, bares, restaurantes e condomínios de casas com arquitetura alpina. É ali que estão instaladas quarenta pistas para todos os gostos e capacidades. Não fosse pelos termômetros frequentemente abaixo de zero e a moldura dos Andes, poderia se pensar estar em um cartão-­postal brasileiro, tamanha a presença de placas em português e iguarias como feijoada e pão de queijo no menu. “Eles são os que mais gastam dinheiro por aqui”, afirma Ricardo Margulis, diretor-geral do complexo.

HABLAMOS PORTUGUÊS - Placas e menu para brasileiros: invasão
HABLAMOS PORTUGUÊS - Placas e menu para brasileiros: invasão (Valmir Moratelli/VEJA)

Deslizar sobre relevos espetaculares nunca é um programa barato, mas para brasileiros a rota em solo sul-americano acaba saindo mais econômica do que em pistas como as de Courchevel, na França, ou de Aspen, no Colorado. Um dos alívios ao bolso é que a conta não é paga nos valorizados dólar ou euro. Também a passagem aérea para o país vizinho pesa menos. Há esquiadores de variados quilates nas geladas descidas chilenas, inclusive muitos neófitos. O engenheiro elétrico Wagner Franklyn, de São Paulo, decidiu fazer uma surpresa e levar a família para conhecer o Valle durante uma viagem ao Chile. Fizeram um bate-volta de Santiago recheado de selfies e diversão. “Ficamos eufóricos em pisar na neve pela primeira vez”, conta Wagner, ao lado da mulher, Gislene. “Nos comunicamos perfeitamente em portunhol por lá”, completa ela.

Por onde quer que se olhe, é praticamente impossível não esbarrar com entusiasmadas rodas verde-amarelas. As caixas de som do Valle são embaladas por funk e, nos bares, a caipirinha, quem diria, desbancou o pisco sour, campeão absoluto da coquetelaria chilena. Às sextas-feiras, garçons fluentes em português servem a famosa feijoada. “Até me confundem com brasileiro”, orgulha-se o recepcionista Reinaldo Apaplasa, 34 anos, cujo sotaque do interior paulista foi assimilado junto à clientela. Houve um tempo em que eram os americanos que apareciam em maior número, realidade que se transformou com o maciço avanço dos brasileiros — 10% a mais hoje do que em 2019.

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NOVATAS NA PISTA - Gislene (à esq.), de São Paulo, e Leia com a filha Ester, de Salvador: contato direto com o gelo
NOVATAS NA PISTA - Gislene (à esq.), de São Paulo, e Leia com a filha Ester, de Salvador: contato direto com o gelo (Valmir Moratelli/VEJA)

Um conjunto de fatores atrai tanta gente àquelas pistas, entre eles as generosas camadas de neve que resistem firmes ali até o fim de setembro, mesmo nestes tempos de aquecimento global. O complexo do Valle Nevado, que andava meio abandonado e chegou a ingressar em processo de recuperação judicial, também passou por uma boa repaginada depois que a empresa americana Mountain Capital Partners assumiu a administração — a mesma que cuida de resorts de neve em Utah e no Colorado, nos Estados Unidos (onde, aliás, a multidão brasileira só faz crescer na temporada do frio). Na concorrida Aspen, por exemplo, eles ficam apenas atrás dos australianos.

Há três categorias de hotel para os que preferem pernoitar em meio às montanhas. A brincadeira, com direito a comida à vontade, voo de helicóptero até o cume e quarto com acesso próprio às pistas, pode ultrapassar os 5 000 reais por pessoa a diária. O contato Brasil-Chile costuma se dar na mais santa paz, mas às vezes o jeitinho brasileiro causa lá suas estranhezas. São relatadas pelos locais as sucessivas tentativas de os vizinhos entrarem em restaurantes com garrafas de vinhos compradas em mercadinhos, mesmo quando não há política de rolha no estabelecimento, e certa displicência com o horário das reservas. Nada que roube a alegria da farra no gelo. “Gosto de ir em busca de sol e praia nas férias, mas queria algo diferente desta vez”, diz Ester Müller, que viajou de Salvador com a mãe, a médica Leia Freitas. Elas e muitos outros já não se contentam com a neve a distância e querem, sempre que dá, estar sobre um belo par de esquis.

Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855

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