Especialista em desigualdade vê Bolsonaro como ‘fantoche da classe média’
Estudioso das desigualdades na Europa, o geógrafo Christophe Guilluy lança no Brasil seu novo livro, 'O fim da classe média'
Por Ernesto Neves
Atualizado em 5 ago 2020, 15h21 - Publicado em 30 jul 2020, 08h01
Estudioso dos problemas sociais da França e da Europa, o geógrafo francês Christophe Guilluy lança neste mês pela editora Record seu novo livro, “O fim da classe média: A fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades“, em que analisa a crescente insatisfação de trabalhadores ao redor do globo. Guilluy atribui o problema ao que chama de “desaparecimento da classe média”, provocado, sobretudo, pela desindustrialização. Guilluy acredita que a pandemia do coronavírus expôs de forma definitiva a questão. “França e Itália sequer conseguem fabricar máscaras”, diz. E não crê no fim da onda de políticos populistas de direita. “Bolsonaro e Trump são fantoches que classe média usa para dizer ‘nós existimos”, afirma. Leia abaixo a entrevista de Guilluy a VEJA.
Os problemas que seu livro descreve sobre a França – crescimento da desigualdade, incerteza, fragilidade da classe média – afetam outros países como Estados Unidos e Brasil. O que está acontecendo ?
Desde o início dos anos 2000, testemunhamos um lento enfraquecimento da classe média por todo o Ocidente. Na Europa, Estados Unidos e Brasil, essa parcela da população vêm sendo desestabilizada por um modelo econômico globalizado que cria riqueza, mas não a espalha pela sociedade. A desconexão entre economia e o povo é ilustrada por um fenômeno impressionante. Hoje, a criação de empregos se divide em dois grupos distintos: os altamente qualificados e de excelentes salários, por um lado, e os de baixíssima qualificação e remuneração risível, por outro. Então, chegamos a uma situação paradoxal e perigosa: os países ocidentais não precisam mais da classe média tradicional para criar riquezas.
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No Brasil, as cidades são historicamente fraturadas entre a periferia carente e o centro abastado. Este é um cenário que agora se repete na Europa. Por quê?
Há uma crescente acentuação da desigualdade entre regiões centrais e suas periferias. Isso acontece como resultado da desindustrialização. Empregos que antes garantiam poder de compra aos trabalhadores deixaram de existir, já que a indústria manufatureira foi embora para a Ásia. Observo que em poucas décadas as grandes cidades se tornaram espécies de “cidadelas do século XXI”. Elas estão cada vez mais ricas, porém fechadas às classes média e baixa. Veja o que acontece com Nova York e Paris, locais onde o custo de vida é proibitivo à maioria. Pela primeira vez na História, as classes populares não podem viver onde os empregos são criados.
Ao punir sobretudo os mais pobres, a pandemia explicitou como a sociedade está fraturada entre ricos e pobres. É possível aproveitar essa crise para reverter o problema?
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A pandemia expôs de forma definitiva a fragilidade das classes média e popular. Mas, embora tenha acentuado o problema, também deu visibilidade às pessoas comuns. Enfermeiros, coletores de lixo, caminhoneiros, entregadores e comerciantes demonstraram que são indispensáveis ao funcionamento da vida moderna. São esses trabalhadores – os mesmos que na França foram às ruas protestar contra as condições de vida usando coletes amarelos – que mantiveram a economia girando durante o confinamento. Só vamos reduzir o fosso social quando valorizarmos essas categorias, que ainda são a maioria da população. Ou seja, precisamos melhorar a rede de proteção à classe média, ou não sairemos do atual impasse econômico e político.
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Como o coronavírus afetou a periferia da França?
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Assim como na crise financeira de 2008, a França periférica está sendo duramente castigada pela desaceleração econômica. Os empregos industriais, agrícolas e turísticos, os mais afetados até aqui, ficam justamente nesses territórios.
O que o senhor achou do fundo de recuperação da Europa anunciado pelo presidente francês, Emmanuel Macron, e a premiê alemã, Angela Merkel?
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É uma boa notícia, mas pode se tornar um ato pouco efetivo se não endereçar as contradições da Europa. Não vejo uma preocupação real em resolver a divisão entre os países do sul – França, Itália, Espanha e Portugal, muito afetados pela desindustrialização, e do norte, como Alemanha e Holanda, que são potências manufatureiras. O plano permite uma recuperação através do consumo, mas não oferece respostas à fragilização da classe média. A pandemia revelou a severidade da desindustrialização: França e Itália, por exemplo, sequer conseguiram produzir máscaras. Sem novos incentivos à indústria, o encolhimento da classe média européia deve acelerar.
Na França, políticos ligados à causa ecológica estão no auge da popularidade. E nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump vem sendo cada vez mais rechaçado. O mundo está passando por uma mudança política? O populismo perdeu força?
Populistas como Trump e Bolsonaro são fantoches que a classe média usa para dizer “nós existimos”. São os indicadores de um sistema em crise. No Ocidente, o principal fenômeno não é o populismo, mas a ressurgência da opinião política da classe média. Esse renascimento vai além da política, é um terremoto cultural. E revela profundas divisões socioeconômicas. O movimento tectônico não vai desaparecer quando superarmos Trump e Bolsonaro. Da mesma forma, a questão da ecologia vai além da política. Hoje, a onda verde é carregada principalmente pelas elites urbanas. O paradoxo é que a classe alta está apoiando a sustentabilidade, mas seu modo de vida, regado a viagens de avião e consumo, é altamente poluente.
A causa ecológica pode ajudar a reduzir a desigualdade?
O advento de um modelo econômico sustentável só será possível se atender às aspirações dos mais pobres. O estilo de vida das pessoas comuns está muito mais alinhado com os limites do planeta se comparado ao dos ricos ricos. Nas periferias e cidades pequenas, a frugalidade é o modo de vida desde sempre.
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