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Atos nas universidades dos EUA testam limites da liberdade de expressão

O ambiente acadêmico americano sempre foi palco de manifestações democráticas. Os violentos protestos a favor dos palestinos negam essa tradição

Por Ricardo Ferraz, Caio Saad Atualizado em 8 Maio 2024, 14h02 - Publicado em 3 Maio 2024, 06h00

Distante cerca de 9 000 quilômetros da Faixa de Gaza, palco do sangrento conflito atual entre as Forças Armadas de Israel e o grupo palestino Hamas, Nova York se tornou nos últimos dias o epicentro da reação — a mais intensa já registrada — da sociedade civil aos desdobramentos do ataque-surpresa que matou 1 200 israelenses em 7 de outubro do ano passado. O furor com que o atentado terrorista foi revidado, fazendo do estreito e superpovoado território às margens do Mediterrâneo uma tira de terra arrasada, tirou o apoio à causa palestina da apatia a que estava relegado, fomentou manifestações e tomou conta dos debates nas universidades, desde sempre palco de provocações à ordem estabelecida feitas na medida para chamar atenção, em movimento político.

REAÇÃO - Universidade da Califórnia em Los Angeles: polícia contra pancadaria
REAÇÃO - Universidade da Califórnia em Los Angeles: polícia contra pancadaria (Etienne Laurent/AFP)

De protesto em protesto, a onda foi se alastrando até entrar em ebulição quando a reitoria da prestigiadíssima Universidade Columbia (de onde saíram 87 vencedores do Prêmio Nobel), fincada em plena ilha de Manhattan e caixa de ressonância de ideias progressistas, decidiu chamar a polícia inicialmente para desmontar um acampamento de estudantes em frente ao edifício principal e, depois, para remover alunos que haviam ocupado um de seus prédios — medida que precipitou uma reação em cadeia capaz de, em menos de uma semana, engolfar mais de 100 universidades nos Estados Unidos e 800 mundo afora.

O rastilho de pólvora que percorre o ambiente universitário com rapidez e mostras de intolerância nunca vistas tem origem, como tudo que acontece atualmente, no cada vez mais polarizado mundo acadêmico, em que a saudável e necessária troca de ideias perde espaço para o radicalismo. Manifestações contra o establishment são capítulos históricos e democráticos da maioria das universidades americanas, incentivadas como parte de um efervescente questionamento relativo a princípios éticos e morais. A reivindicação de cessar-fogo e criação de um Estado palestino, contudo, descambou para gritos, faixas e slogans de rejeição total a Israel, ao sionismo e, por tabela, aos judeus em geral. Dessa forma, impôs-se no campus um discurso manchado de ódio e antissemitismo que testa os limites da liberdade de expressão.

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AGRADECIMENTO - Aliados: palestinos comemoram o apoio dos alunos revoltosos
AGRADECIMENTO - Aliados: palestinos comemoram o apoio dos alunos revoltosos (Anas Zeyad Fteha/Anadolu/Getty Images)

Entoando as clássicas palavras de ordem que defendem uma Palestina “do rio ao mar”, o que implicaria a extinção de Israel, os manifestantes passaram a impedir o acesso às salas de aula, a constranger professores e alunos que não se alinham à causa e a assediar e insultar qualquer judeu à vista. “Diga em alto e bom som: não queremos sionistas aqui”, pregava um grito de guerra no campus. “Quando a situação passa de palavras desagradáveis para ocupação de propriedade privada, depredação e hostilidade aberta contra outros grupos que também querem protestar, a coisa muda de figura”, diz Natalia Pasternak, cientista brasileira que trabalha em Columbia e vem acompanhando os acontecimentos de perto.

VOTOS EM JOGO - Biden e Trump: protestos entram na campanha eleitoral
VOTOS EM JOGO - Biden e Trump: protestos entram na campanha eleitoral (Fotos Saul Loeb/AFP; Timothy A. Clary/AFP)

Depois de chamar os agentes de segurança para desmontar o acampamento do protesto (que foi imediatamente remontado) e transferir todas as aulas para o sistema on-line, a direção de Columbia tentou negociar um desfecho pacífico, acenando com a possibilidade de cumprir sem atrasos o calendário escolar. Simultaneamente, ameaçava suspender e até expulsar os alunos envolvidos na manifestação. Não houve acordo e o caldo entornou de vez quando um grupo mais radical de estudantes, funcionários e pessoas sem vínculo com a universidade invadiu o Hamilton Hall, na terça-feira 30, prédio tradicional ocupado várias vezes por ativistas no passado.

Em meio a barricadas nas portas, paredes pichadas e janelas quebradas, a polícia prendeu 300 manifestantes em uma tarde. “Não tivemos escolha”, justificou a reitora Minouche Shafik. Ela e seus colegas tentam se equilibrar atualmente sobre uma linha finíssima entre preservar a independência acadêmica e a liberdade de expressão, de um lado, e frear os excessos e a intolerância contidos no radicalismo, de outro. Reivindica-se, entre os militantes, o corte de qualquer laço de patrocínio para Columbia de empresas que forneçam equipamento e assistência militar a Israel. A contrapartida, assustadora para a saúde financeira da instituição: o risco de perder as generosas doações de ex-alunos de origem judaica incomodados com a virulência dos protestos.

GLOBALIZOU - Ato pró-palestinos na Universidade Sciences Po, em Paris: movimento se espalha pelo mundo
GLOBALIZOU - Ato pró-palestinos na Universidade Sciences Po, em Paris: movimento se espalha pelo mundo (Oliver Chassignole/AFP)

Em dezembro, as reitoras de Harvard, Claudine Gay, e da Penn State, Liz Magill, pediram demissão depois de se recusarem a condenar sem meias-palavras o tom antissemita dos protestos nas duas universidades, durante depoimento na comissão de educação da Câmara dos Deputados. Lição aprendida, ao se apresentar perante os mesmos congressistas há duas semanas, Shafik, indagada se comparar a situação em Gaza com o Holocausto, como fazem os manifestantes, viola o código de conduta de Columbia, respondeu que sim. Essa confirmação e a presença de policiais no campus (ela pediu que lá permaneçam até o fim do semestre universitário) representam um rompimento da tradição liberal que impera entre professores e alunos do ensino superior. Para traçar uma linha clara entre a liberdade de expressão e a xenofobia, a Câmara aprovou a toque de caixa, na quarta-feira 1º, uma ruidosa lei que amplia o conceito de antissemitismo. É um modo de acuar os grupos mais radicais de esquerda que, agora, empunham a bandeira pró-palestinos (sempre cara à ala progressista, mas nunca com tamanho rancor).

Órfãos de causas barulhentas desde que se uniram fugazmente na luta contra a desigualdade social em 2011, no movimento que ficou conhecido como Occupy Wall Street, os jovens da fileira mais progressista hoje tecem loas ao Hamas como se não se tratasse de um grupo terrorista enraizado no fundamentalismo islâmico, que oprime mulheres e minorias e jamais permitiria manifestações do gênero em seus domínios. E exigem que a direção das escolas onde estudam faça o mesmo. “Não é aconselhável que as universidades tomem partido e posições políticas em questões globais complexas e controversas”, pondera David Mednicoff, diretor do departamento de estudos judaicos e do Oriente Médico da Universidade de Massachusetts.

LINHA FINA - As reitoras Shafik (à esq.) e Gay: emprego complicado
LINHA FINA - As reitoras Shafik (à esq.) e Gay: emprego complicado (Drew Angerer/AFP; Will Oliver/EPA/EFE)

A ebulição não para de aumentar, como imitação da guerra, em que os dois lados tendem ao precipício. Poucas horas depois da desocupação do Hamilton Hall em Nova York, no campus da Universidade da Califórnia em Los Angeles, um grupo mascarado, pró-Israel, atacou a golpes e pontapés as barricadas erguidas em torno de um acampamento a favor da Palestina, dando início a uma pancadaria generalizada. As aulas foram suspensas. “Estávamos ali pacificamente, havia pessoas judias, cristãs, muçulmanas, budistas, de várias origens étnicas”, disse a VEJA Sarah, 28 anos, estudante da pós-graduação que se juntou ao grupo que apoia a causa palestina e prefere não dizer o sobrenome, com medo de represálias. Na manhã seguinte, as forças de repressão voltaram a agir para pôr fim ao acampamento e prenderam outras 200 pessoas.

Ao longo da semana, guardas foram acionados para dar fim a 34 revoltas em uma centena de universidades conflagradas, o que resultou na prisão de cerca de 2 000 estudantes. No campus de Tulane, em Nova Orleans, a reconhecidamente truculenta polícia da cidade deteve manifestantes em um protesto pacífico e controlado. “Não havia qualquer possibilidade de o ato escalar para algo mais grave”, diz o brasileiro Idelber Avelar, professor de estudos latino-americanos da universidade. “Estamos vivendo uma situação muito particular, em que bandeiras, lenços e cartazes são interpretados como apoio ao terrorismo.” Trata-se do nó de sempre: os sensatos pagam pelos radicais.

Além de insuflar revoltas e violência em toda parte, o movimento dos universitários pró-palestinos é uma dor de cabeça para os democratas, faltando seis meses para a eleição. O presidente Joe Biden, empatado ou atrás de Donald Trump nas pesquisas e precisando de cada voto, teme que o eleitorado jovem — ao menos o bloco anti-israe­len­se — o abandone. Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas com menos de 30 anos simpatiza mais com a Palestina do que com Israel (33% a 14%), situação inversa à do total dos votantes (16% a 31%). Pressionado a tratar do assunto desde que os protestos irromperam, Biden quebrou o silêncio na quinta-feira para repetir o óbvio aos estudantes: “Eles têm o direito de protestar, mas não de causar o caos”. Os republicanos, por seu lado, não perdem a chance de explorar os protestos como uma mostra de fraqueza do governo. “Os de­mo­cra­tas não conseguem controlar a universidade no momento em que os alunos estão entrando nos exames finais”, disse o presidente da Câmara, o republicano Mike Johnson, em visita a Columbia na qual criticou o movimento pró-palestinos: “É injusto, é errado, é inseguro e precisa parar”.

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1970 - Estudantes americanos pedem a paz no Vietnã: protestos surtiram efeito
1970 - Estudantes americanos pedem a paz no Vietnã: protestos surtiram efeito (Ed Farrand/The Boston Globe/Getty Images)

Um bom exercício, dada a quentura de agora, é olhar para o passado. Alvo preferencial do alistamento militar obrigatório durante a Guerra do Vietnã, os universitários americanos se mobilizaram em uma ação conjunta que atingiu seu ápice em maio de 1970, quando 4 milhões de jovens protestaram em mais de 700 universidades depois que o então presidente Richard Nixon anunciou a invasão do Camboja. O enfrentamento com a Guarda Nacional levou à prisão e até morte de manifestantes, mas também contribuiu para influenciar a opinião pública, que passou a pressionar pela retirada das tropas. Dificilmente a onda pró-palestinos de agora terá resultado parecido, não apenas pelo fato de os EUA não estarem diretamente envolvidos no confronto, como também pela intolerância que tomou conta das manifestações. “Tanto o discurso antissemita quanto o antipalestino, que distingue indivíduos por sua etnia ou origem, representam discriminação e não podem ser tolerados”, diz Anthony Romero, diretor-­executivo da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU).

No final do século XVIII, o seleto grupo de líderes que se reuniu para superar as diferenças políticas depois da Guerra da Independência e fundar os Estados Unidos estabeleceu a liberdade de expressão como um dos pilares fundamentais da recém-nascida democracia. A primeira emenda à Constituição do país garantiu aos cidadãos o direito de se reunir e propagar ideias sem qualquer tipo de censura, uma regalia de valor incomensurável que, infelizmente, vem sendo constantemente achincalhada e abusada em tempo de fake news e extremismos. Nas universidades, onde a intensa troca de ideias e opiniões forma corações e mentes, expressar-se livremente é uma necessidade a ser preservada com clareza, responsabilidade e a tolerância necessária ao bom exercício da democracia. A violência não se encaixa nisso.

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Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891

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