As novas estratégias da Ucrânia para tentar virar o jogo na guerra
Soldados têm sido treinados também em campos no exterior. VEJA visitou uma unidade britânica onde 800 ucranianos seguem rigorosa rotina militar
Meio escondido pela guerra no Oriente Médio, o esforço da Ucrânia para fazer frente à invasão russa, impressionante por sua garra e eficácia nos meses que se seguiram à agressão, parece cambaleante agora que o conflito entra em seu terceiro ano. Uma projetada grande ofensiva fracassou, o imprescindível fluxo de ajuda americana está fechado por uma rixa surda no Congresso e, na linha de frente, as tropas recuam devido ao cansaço e à falta de munição. Mesmo assim, a luta continua — impulsionada pelo entendimento de que uma derrota ucraniana terá impacto devastador na segurança ocidental e na divisão de forças na geopolítica mundial. Em meio ao clima geral de desânimo, com a Rússia reforçada por vitórias territoriais e deslanchando ataques aéreos intensivos contra Kiev e outras cidades, um sopro de alívio veio do anúncio do presidente da Câmara americana, Mike Johnson, de que uma ajuda de 60 bilhões de dólares à Ucrânia pode ser destravada nos próximos dias.
Johnson, da tropa trumpista que bloqueia esses recursos há meses, parece ter chegado a uma fórmula aceitável para os colegas e pretende levá-la a plenário. Se o canal dos dólares for reaberto, os ucranianos deverão consumi-lo rapidamente, antecipando-se à possível eleição do isolacionista Donald Trump, que manifestamente se opõe a jogar dinheiro dos Estados Unidos em uma guerra “que não é nossa”. Enquanto a ajuda não vem, as forças da Ucrânia fazem uso da habilidade adquirida em montar e utilizar drones para atacar alvos distantes, com eficiência. No Mar Morto, QG da força naval russa bloqueado por ela no início da guerra, enxames desses artefatos já destruíram um terço dos navios inimigos e o país conseguiu reabrir o corredor vital por onde exporta seus grãos. Também são alvos refinarias e bases militares dentro do território russo. “A ameaça dos drones ucranianos obriga Moscou a voltar atenção e recursos a seu combate, o que afeta sua estratégia como um todo”, diz Basil Germond, pesquisador de segurança internacional da Universidade Lancaster.
A Ucrânia também multiplica seus investimentos na indústria bélica local, fabricando blindados e lança-mísseis, embora a falta de matéria-prima e de know-how a impeça de suprir a escassez de munição: calcula-se que a Rússia dispare atualmente cerca de 10 000 projéteis por dia, contra 2 000 da Ucrânia. “É difícil competir com um lado muito mais equipado. Nosso maior problema agora é a falta de equipamentos, principalmente munições”, disse a VEJA um militar do alto escalão do Exército ucraniano, em condição de anonimato.
Unidos no mesmo propósito, governantes da Europa preocupados com o avanço russo e empresas de olho no potencial de negócios estão instalando filiais de fábricas de armamentos na Ucrânia — Alemanha, Turquia e França já aderiram —, o que deve ampliar seu poder de fogo. Também está em negociação na União Europeia um pacote de 50 bilhões de euros em ajuda e uma injeção emergencial de 5 bilhões acaba de ser aprovada. Outra forma de suporte ao país tem sido o treinamento de seus soldados em campos no exterior, sendo o mais ambicioso desses programas a Operação Interflex. Em meados de março, VEJA visitou uma unidade britânica da Interflex onde 800 ucranianos seguem rigorosa rotina militar. “A meta é simples: aumentar a letalidade e, ao mesmo tempo, a capacidade de sobrevivência dos combatentes”, diz o capitão britânico McNally.
Baixa e franzina, Hanna (todos os recrutas com quem VEJA conversou pediram para não dar o nome completo), 48 anos, era professora do ensino infantil na Ucrânia e, após cinco semanas no Reino Unido, vai integrar as forças em combate como sniper, designação em inglês dos atiradores de elite. “Minha família ficou chocada quando contei que havia me alistado, mas respeitou minha decisão”, conta Hanna, que deseja que os dois filhos e os alunos cresçam em segurança. “Eles estão tendo uma infância difícil, entre bombas e sirenes”, lamenta.
A maior parte do contingente de educadores, pedreiros, padeiros, motoristas de táxi e estudantes universitários nunca havia empunhado um fuzil antes da guerra. “Meu único contato com armas até chegar aqui era através de videogames”, confirma a vendedora Halyna, 19 anos, olhos claros realçados pela balaclava que cobre o rosto e os cabelos, que diz que a decisão de se alistar partiu de um drama familiar: seu cunhado, que lutou na guerra, está em coma com fragmentos de granada alojados na cabeça durante uma explosão nas trincheiras. Hanna e Halyna são duas das poucas mulheres — menos de 2%, segundo o Ministério da Defesa britânico — na Interflex, projeto multinacional liderado pelo Reino Unido, com instrutores de Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Lituânia, Holanda e Romênia.
Os treinamentos são focados em simulações entre prédios erguidos para este fim, com efeitos de áudio imitando explosões, tiros e gritos e maquiadores que aplicam feridas falsas em atores. Também existem áreas arborizadas onde os voluntários aprendem a se deslocar, camuflados, por florestas densas. Com quase 2 metros de altura, o militar ucraniano Dmytro, 30 anos, é instrutor de guerra de trincheiras e faz os recrutas se esgueirarem na lama para se protegerem de granadas e foguetes. “É extremamente cansativo para o corpo e para a mente, até para quem já tem condicionamento físico e um certo preparo”, conta o ex-segurança de uma casa noturna nos arredores de Kiev.
O encarregado de negócios ucraniano em Londres, Eduard Fesko, ressaltou a VEJA que é mais barato ajudar a Ucrânia agora, “antes que o problema se espalhe”. “Engana-se quem pensa que o ataque russo é um ataque à fronteira ucraniana.” Em seu balanço mais recente, de fevereiro, Volodymyr Zelensky contabilizou 31 000 soldados mortos na guerra, mas analistas militares ocidentais falam em 75 000 (do lado russo, as baixas, entre mortos e feridos, chegariam a 350 000). Para tentar superar as perdas, o presidente assinou na quarta-feira uma lei que reduz a idade mínima de recrutamento do país de 27 para 25 anos. Empenhado em resistir, Vadym, 22 anos, mesmo assim tem planos de voltar à faculdade de agronomia. “Talvez começar a cultivar algo, criar uma família”, divaga. Sob agressão de um gigante, em um embate sem solução à vista, os ucranianos que treinam no Reino Unido sonham com dias melhores.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887