Após seis meses, Milei enfrenta prova de fogo no governo argentino
Presidente tenta tecer acordos com políticos de quem desdenhava — movimento vital para destravar medidas que ambicionam 'refundar o Estado'
Seis meses depois de acomodar-se na cadeira presidencial com um projeto de virar a Argentina de cabeça para baixo, política e economicamente, Javier Milei colhe elogios de economistas e do próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) por haver colocado a inflação galopante em viés de baixa e, graças a um corte fulminante de subsídios, registrar o primeiro trimestre de superávit primário do país em mais de uma década. Ele ainda peleja, no entanto, para fazer vingar no Parlamento seu pacote de medidas reformistas, do qual sua gestão depende para efetivamente produzir resultados duradouros — uma dificuldade para lá de esperada, mas que não deixa de minar, aos poucos, o entusiasmo popular pela prometida revolução ultraliberal. É portanto contra o relógio que Milei se mexe para tentar pôr para frente um calhamaço de artigos batizado de Lei de Bases, mais conhecido como Lei Omnibus (para todos, em latim).
Diante dos inúmeros sinais de que seria barrado no Senado, o projeto foi retirado da pauta pelos próprios governistas, que nestes últimos dias se dedicam às costuras de bastidor para cooptar os mesmos políticos contra os quais, durante a campanha, o atual ocupante da Casa Rosada esbravejava: “Vocês são a casta”. O choque de realidade que se apresenta a Milei veio na forma de muita negociação em torno desse abrangente plano que, no conjunto, pretendia implantar vastas reformas ao mesmo tempo, retirar benefícios das várias camadas da população de uma só tacada e lhe conferir superpoderes.
Na aridez da vida prática, porém, os 664 artigos se converteram em 232 e, assim, a lei foi aprovada no mês passado pela Câmara, onde desafetos diversos do presidente passaram a ironicamente se referir a ela como “micro-ônibus”. Agora, é ver no que vão dar as tratativas com os opositores no Senado, uma questão de sobrevivência para a ambiciosa investida de Milei, que ele sonhava celebrar em Córdoba com um evento envolto em pompa, o Pacto de Maio. Planejado para sábado 25, feriado nacional que marca o primeiro grito de liberdade argentino em meio ao processo de independência, em 1816, o ato, que contaria com os governadores, peças centrais no tabuleiro político local, propõe uma “refundação do Estado” sobre bases liberais. Até os últimos minutos, Milei ainda calculava a melhor saída frente às circunstâncias. “Se o pacto não for em maio, será em junho ou julho”, dizia.
A atual versão da Lei de Bases à mesa, mesmo que desidratada, prevê altos sacolejos na condução e nos rumos da Argentina. Na Câmara, Milei não obteve a carta branca que almejava para atuar por decreto por três anos em onze áreas do governo. Teve de se contentar com quatro (energia, finanças, economia e administração), e por um ano apenas. Em paralelo, conseguiu emplacar uma reforma trabalhista que flexibiliza as contratações, estende o período de experiência de novos funcionários e muda as regras de aposentadoria, mas mantém o direito de greve nos serviços essenciais e a contribuição sindical obrigatória — dois tópicos que estavam em sua mira quando brandia suas bandeiras eleitorais. Da lista que previa a privatização de todas as estatais, foram removidas duas essenciais, a petrolífera YPF e o Banco de la Nación, embora a aérea Aerolíneas Argentinas siga firme no rol. “Milei queria mudar tudo da noite para o dia, só que o jogo é muito mais complicado”, enfatiza o economista Ruy Santacruz, da Universidade Federal Fluminense.
A aprovação do pacote se faz crucial para sedimentar alguns bons resultados já registrados nesses seis meses. Em abril, a inflação, maior chaga nacional, recuou para um dígito, ficando em 8,8% versus os 11% de março, e as contas do governo fecharam no azul pela primeira vez em dezesseis anos, marca festejada pelo mercado financeiro. Até o peso, a castigada moeda nacional, ganhou relativa estabilidade, após praticamente virar pó na gestão anterior, conduzida pelo peronista Alberto Fernández. Tais avanços, lembram os observadores de plantão, é fruto de um arrocho brutal, incluindo aí cortes de subsídios e benefícios que tiveram reflexos no bolso. No curto prazo, isso vem contribuindo para elevar o nível da pobreza, que passou de 44% para 60% da população desde dezembro, e desacelerar a economia. A projeção é de que o PIB sofra contração de 3,3% este ano.
Em um roteiro previsível — Milei havia avisado que o “remédio seria amargo” e a oposição já se inflamava desde a largada —, as poderosas máquinas sindicais dos hermanos começaram a se movimentar. No início de maio, uma greve geral contra as reformas paralisou os transportes e tomou as ruas das grandes cidades. “Milei precisa se apressar, já que a confiança da população vem caindo à medida que se aprofunda a recessão”, avalia o economista Livio Ribeiro, sócio da consultoria BRCG. Mesmo tendo perdido treze pontos de aprovação, ele ainda está bem instalado na faixa dos 45%, mas sabe que deslanchar sua reforma fiscal é pré-requisito para atrair investimentos e melhorar as contas do governo.
O equilíbrio fiscal compõe o decálogo mileiano, este que ele quer levar aos holofotes no Pacto de Maio, assim como a inviolabilidade da propriedade privada e a redução do gasto público a 25% do PIB. Também é citado o compromisso das províncias de seguirem de vento em popa com a exploração dos recursos naturais, agenda que fere ambientalistas e tem por objetivo angariar apoio dos governadores, interessados no afluxo de dinheiro. “Na Argentina, sem o apoio dos líderes das províncias, é muito difícil ampliar o capital político”, explica o economista Francisco Olivero, da Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires.
Caminhando sobre tão delicada linha, em que o amargor das medidas já em execução não pode passar do ponto, Milei encarregou a irmã, Karina, à frente da Secretaria-Geral da Presidência, e seu assessor mais próximo, Santiago Caputo, das negociações no Senado. Os três compõem o que já se habituou a chamar de “triângulo de ferro”, grupo no qual o presidente se destaca pela língua ferina. Adepto da cartilha da extrema direita global, vire e mexe o mandatário de madeixas revoltas produz frases de efeito, desviando o foco dos enroscos domésticos e, não raro, provocando desnecessárias dores de cabeça.
Na terça-feira 21, desencadeou uma crise com a Espanha durante a conferência em Madri do Vox, sigla da ultradireita espanhola, onde partiu para o ataque à primeira-dama Begoña Gómez, mulher do primeiro-ministro socialista, Pedro Sánchez. Chamou-a de “corrupta”, numa alusão a uma investigação já arquivada contra ela. Em resposta, o premiê convocou a embaixadora em Buenos Aires de volta para casa. Um pedido de desculpas teria amainado os ânimos, mas Milei não deu um pio. Não foi a primeira vez. Já estiveram em sua mira os presidentes Gabriel Boric, do Chile, Gustavo Petro, da Colômbia, e até o papa Francisco. Assim, ele mantém a turma radical mobilizada, e só. Para dar mesmo o salto que pretende, é recomendável agir com mais prudência.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894