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Angela Merkel enfrenta seu derradeiro desafio

Prestes a deixar a vida pública, a chanceler não diminuiu o ritmo. Pelo contrário, sua agenda tem apertados nós que ela precisa desatar até o fim do ano

Por Caio Mattos, Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h00 - Publicado em 4 dez 2020, 06h00

Desde sua chegada ao poder, em 2005, a chanceler alemã Angela Merkel vem atravessando cenários adversos e um mundo em transformação com serenidade, pragmatismo e uma grande habilidade para conduzir crises. A postura fez da Alemanha a economia mais forte do continente e proporcionou à chanceler estatura sem igual entre seus pares na União Europeia. À frente de todas as grandes decisões do bloco na última década por força de uma liderança de fato forjada na negociação de incontáveis acordos políticos, Merkel detém no momento também a chefia de direito da UE, ao ocupar a presidência rotativa do Conselho de Ministros da União Europeia, que reúne os chefes de Estado. Tinha tudo para ser seu momento final de glória, já que decidiu por vontade própria não se candidatar novamente ao Parlamento e deixar a vida política. “É inegável que a importância da Alemanha cresceu imensamente na sua gestão”, avalia Guntram Wolff, diretor do centro de estudos Bruegel, de Bruxelas.

No entanto, em vez de colher louros, Merkel está tendo, isso sim, que trabalhar dobrado para descascar dois abacaxis — a rebelião dos governos ultraconservadores da Polônia e da Hungria, que trava a aprovação do trilionário Orçamento para 2021, e a definição das derradeiras (e mais complicadas) cláusulas da lenga-lenga do Brexit. Tudo até 31 de dezembro, no máximo. A questão financeira é a mais premente. Depois de muita discussão, e por insistência da própria Merkel, os mandatários da UE aprovaram em julho o Orçamento de 1,1 trilhão de euros para 2021-2027 e mais um megapacote de 750 bilhões de euros especificamente destinado a tirar as economias do bloco do abismo cavado pela pandemia. Na mesma época, para facilitar o trâmite das aprovações, foi dada uma mexida na cláusula estabelecida na fundação da União Europeia que condiciona repasses de recursos ao respeito, por parte dos governos, a princípios e instituições democráticas.

A cláusula era um espinho atravessado na garganta dos dois autocratas mais estridentes da Europa, o húngaro Viktor Orbán e o polonês Mateusz Morawiecki. Ambos são repressores entusiasmados da independência do Judiciário, da liberdade de imprensa e de quem mais se opuser a eles. Também perseguem com gosto os gays e outras minorias. Mesmo assim, em nome da boa vizinhança, a tal cláusula foi atenuada para afetar apenas o dinheiro diretamente ligado a eventuais atentados à democracia. Não adiantou — Orbán e Morawiecki, unha e carne, dizem que só dão o sim ao Orçamento e ao pacote de ajuda quando a cláusula for eliminada. Sem unanimidade, não há aprovação, apesar de os países da UE necessitarem desesperadamente de recursos, sobretudo os mais pobres — caso justamente de Hungria e Polônia. Merkel, como é de seu feitio, tende a pôr panos quentes. “Trata-se de um projeto essencial e temos de estar preparados para algum tipo de compromisso”, contemporizou recentemente.

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No caso do Brexit, os onze meses de transição estão chegando ao fim sem que haja acordo sobre as mesmas e insuperáveis questões de sempre. As negociações recomeçaram no sábado 28, após meses de esporádicos debates virtuais. O lado britânico afirma que 95% das desavenças foram solucionadas e Bruxelas diz que as poucas pendências devem ser resolvidas em breve. Mas o fato é que não há acordo à vista para três nós: a divisão da pesca em águas britânicas, a definição de taxas e incentivos “justos” na indústria e no comércio bilateral e o enrosco insolúvel da fronteira que não pode existir entre a Irlanda (que é da UE) e Irlanda do Norte (que não é mais). Nesse contexto, ganha força o movimento para que os dois lados se conformem e procedam à separação definitiva de qualquer jeito. No começo será difícil, mas pelo menos ambos terão a chance de resolver perrengues sem a premência de prazos rígidos. “Não precisamos de um acordo a qualquer preço”, declarou Merkel recentemente.

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Outra sombra que paira sobre os passos finais da chanceler é o recrudescimento dos casos confirmados de contágio pelo novo coronavírus na Europa, obrigando os países — a Alemanha inclusive — a fechar bares e restaurantes e voltar atrás nas medidas de flexibilização, sob intenso protesto das populações fartas de restrições. A expectativa de uma vacina ameniza as perspectivas futuras, mas no curto prazo a previsão é que, com a chegada do inverno, a pandemia se alastre, apagando um pouco do brilho da atuação de Merkel no primeiro semestre do ano: com testagem intensa, quarentenas pontuais e boa rede de saúde pública, a Alemanha se tornou referência no combate à Covid-19.

A chanceler anunciou há dois anos que não sairia candidata nas eleições de 2021 e, em consequência, não disputaria a presidência do CDU, seu partido, na convenção marcada para este mês. Ato contínuo, Merkel lançou sua candidata à liderança partidária, a ministra da Defesa Annegret Kramp-­Karrenbauer, conhecida como AKK. No germânico planejamento sucessório, Merkel nem esperaria a nova eleição — transferiria o cargo para AKK ao final do encontro partidário, deixando em suas mãos a incumbência de conduzir o CDU à vitória eleitoral em 2021. Deu tudo errado. A sucessora ungida pediu demissão da liderança, devido a seguidos reveses em votações locais, e a convenção do CDU foi adiada por tempo indeterminado por causa da pandemia.
Certo nisso tudo é que a longa trajetória de Merkel está prestes a terminar e ela fará falta. Segundo recente pesquisa do instituto Pew, a chanceler alemã, apesar da absoluta falta de charme, é vista no continente europeu como fator determinante para a estabilidade. Na Alemanha, sete em cada dez alemães aprovam sua administração, uma alta puxada pela gestão da pandemia. Com tantos pontos a favor, fica difícil imaginar como a combalida Europa vai funcionar sem ela.

Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716

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