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América, aqui vou eu: brasileiros reavivam sonho de tentar a vida nos EUA

O governo Biden relaxa as regras para a entrada de estrangeiros e anima quem pretende mudar de país

Por Sofia Cerqueira, Matheus Deccache Atualizado em 4 jun 2024, 13h17 - Publicado em 12 mar 2021, 06h00

Um grupo de WhatsApp de nome sugestivo — “Até logo, Brasil” — faz parte de um gênero já conhecido: ele reúne centenas de pessoas ansiosas para tentar uma vida melhor no Estados Unidos e veteranos cheios de dicas que conseguiram cruzar a fronteira que os separava da terra prometida. Na era de Donald Trump, uma dura política de não apenas barrar a imigração, mas despachar para casa aqueles que se infiltravam ilegalmente no país (muitos brasileiros), com direito a separação de pais e filhos, freou o sonho americano. Pois agora os ventos nas bandas do Rio Grande, que serpenteia a fronteira com o México, parecem estar mudando, embalados por novas medidas e acenos de maior flexibilidade por parte do novo governo de Joe Biden — a ver ainda no que vão dar. Mesmo sem garantia de nada, os grupos de WhatsApp voltaram a toda, movimentando uma cadeia feita para prover a logística (legal ou ilegal) para quem quer imigrar.

arte emigração

VEJA entrou no “Até logo, Brasil” e ali esbarrou com um anúncio que vai direto ao ponto. “Colocamos você dentro dos Estados Unidos em dez dias. Valor: 6 000 dólares”, promete a propaganda, acrescentando um número de telefone com prefixo da Cidade do México. A reportagem encontrou do outro lado da linha um solícito brasileiro, que há três décadas engrossa a turma dos coiotes, como são conhecidos os agenciadores que põem os imigrantes ilegalmente dentro dos Estados Unidos. Apresentando-se como Joel, o homem desfiou suas credenciais: entra e sai do território americano à vontade com seu visto permanente, graças aos cinco filhos nascidos ali, e jura que o périplo “é seguro e não tem nada de atravessar rios ou pular muros”. O primeiro passo, explica, é depositar 60% do valor em uma conta no Brasil e mandar fotos do passaporte. “Precisamos fazer acordos com as autoridades, pagá-las, inclusive no aeroporto mexicano. Elas estarão com o seu retrato, para não haver problema”, esclarece Joel, que dá uma medida de quão fervilhante anda o mercado nessas últimas semanas. “Recebo todo dia 200 ligações de brasileiros interessados”, diz.

A pujança na seara dos coiotes reflete algumas iniciativas recentes do governo americano. Uma delas foi o aviso de que Washington voltaria a emitir green cards e vistos de trabalho, suspensos há quase um ano por Trump. Soou como música nos ouvidos que sabem como a engrenagem funciona: donos de green cards facilitam a entrada de parentes de primeiro grau. Também está em vigor um decreto que interrompe a norma trumpista de mandar ao México aspirantes ao asilo, para esperar uma resposta a perder de vista, e ainda proíbe deportações até fim de abril — o que faz Joel, o coiote brasileiro, pressionar a clientela: “Vocês precisam decidir logo. Agora é a hora”.

MONEY, MONEY - A manicure valadarense Grasiele dos Reis concluiu que pode quase decuplicar a renda em solo americano: “Vou tentar o visto de turista e aguardar uma brecha para conseguir ficar”, diz -
MONEY, MONEY – A manicure valadarense Grasiele dos Reis concluiu que pode quase decuplicar a renda em solo americano: “Vou tentar o visto de turista e aguardar uma brecha para conseguir ficar”, diz – (Leonardo Moraes/VEJA)
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Os recentes anúncios da Casa Branca, que vêm atraindo uma multidão à fronteira, reacenderam os planos de uma turma de brasileiros e ecoaram com a força de um tsunami na mineira Governador Valadares, tradicional polo de imigração para os Estados Unidos. A 314 quilômetros de Belo Horizonte, é a cidade brasileira campeã em enviar gente para lá, excluindo as capitais. Um de cada quatro eleitores do município apelidado de “Valadólares” (referência às vastas remessas da moeda americana para os familiares que ficam) concluiu a rota — 40 000 dos 280 000 habitantes. O vendedor Bruno Cabral, 38 anos, quer refazer a vida ao lado da mulher, Erica Xavier, 36, e de Bruna, a filha de 15, talvez em Boston. “A maior parte dos meus amigos está lá. Vários foram com os coiotes, mas meu plano é entrar pelo aeroporto, a porta da frente, e estou vendo como viabilizar”, conta.

A estratégia de ingressar com visto de turista e, uma vez no país, ir prolongando a estadia ilegalmente é clássica — e às vezes funciona. A pessoa compra carro, casa, começa a pagar impostos, e aí contrata um advogado para tentar regularizar sua permanência. É uma loteria, sobre a qual agora depositam-se mais fichas. “Quem reside hoje de forma ilegal no país acredita que cresceram as chances de acertar sua situação. Também observamos o aumento no volume dos processos de imigração, esses legais”, diz Stefano Couri, da Associação Brasileira dos Agentes de Viagens de Governador Valadares.

NA FRONTEIRA - Grupo de várias nacionalidades pede asilo: novos acenos atraíram uma multidão -
NA FRONTEIRA - Grupo de várias nacionalidades pede asilo: novos acenos atraíram uma multidão – (Picture Alliance/Getty Images)
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O sonho americano mobiliza a sociedade valadarense desde os anos 1940, quando engenheiros dos Estados Unidos vieram ampliar uma estrada de ferro na região e um integrante da equipe resolveu ficar, montando uma escola de inglês que acabou por estimular intercâmbios entre os que podiam pagar uma ida à América. Em meados de 1960, a onda migratória pegou, alcançando o ápice duas décadas mais tarde, sob o impulso da crise econômica da qual todo mundo queria escapar. Mas o caminho nunca foi fácil, sempre permeado de negativas a vistos e saias-justas na fronteira. “A aventura americana está tão entranhada nos moradores de Valadares que eles banalizam os riscos. Quem tem o visto negado acha natural fazer a travessia terrestre, a pé”, analisa a socióloga Sueli Siqueira, especialista em migração internacional, da Universidade Vale do Rio Doce.

Os que se arriscam nas mãos de agenciadores clandestinos desembolsam até 20 000 dólares. A passagem do Brasil para a Cidade do México chega em poucas horas. Promete-se pernoite em hotel, mas nem sempre se cumpre, assim como um voo comercial em 48 horas para alguma cidade fronteiriça, o que também por vezes falha. “Em vez de ficar num hotel, fui levado para uma casa lotada, e o voo até a fronteira virou uma viagem de 24 horas de ônibus”, lembra um valadarense que atualmente trabalha como pintor perto de Boston, onde se instalou com a filha de 5 anos em 2019, logo antes de as políticas imigratórias endurecerem. Como tantos outros, depois de fincar os pés nos Estados Unidos, ele se entregou aos agentes, ficou dois dias em um abrigo, deu os documentos e, liberado, passou a se apresentar assiduamente à Justiça, em um trâmite que normalmente se arrasta entre cinco e oito anos, com resultado imprevisível. Deu sorte de não ser posto em um avião para o Brasil, destino de 18 000 brasileiros só em 2019. “Fui pega após vinte anos nos Estados Unidos. Vou tentar o perdão do governo e, se não conseguir, cruzo a fronteira novamente”, afirma, determinada, outra moradora da cidade mineira.

DE VOLTA PARA CASA - Aeroporto de Confins: 18 000 barrados em um ano -
DE VOLTA PARA CASA – Aeroporto de Confins: 18 000 barrados em um ano – (Gustavo Baxter/Nitro/.)
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Estima-se que 1,6 milhão de brasileiros vivam hoje em solo americano — a maior parte em Boston e com empregos de baixa remuneração. De todo modo, é mais do que conseguiriam no Brasil, calculam. “Meu grande objetivo é morar na América. Enquanto em Valadares recebo 40 reais para fazer uma unha, lá ganharia 60 dólares (cerca de 350 reais)”, suspira a manicure Grasiele dos Reis, 32 anos, que está juntando a documentação para obter o visto de turista e tem esperança de que se abra uma brecha para poder ficar. E assim ela segue o fluxo natural das migrações humanas, que sempre ganham corpo quando a situação financeira aperta e se vislumbra em outra parte do planeta a chance de uma vida melhor.

Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729

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