A tropa de choque
Para reprimir protestos, Nicolás Maduro trocou os militares pelas Faes, uma força policial truculenta e adepta de execuções sumárias
Cada vez mais impopular e estrangulado economicamente, Nicolás Maduro esperneia para fazer frente a uma situação com a qual nunca deparou: a Venezuela sob um governo paralelo, que não manda em nenhum órgão ou força pública, mas tem o apoio da população (e de boa parte do mundo). Cada vez que Juan Guaidó, o autoproclamado presidente provisório que o desafia, lança uma convocação, o povo vai às ruas em massa, como aconteceu no sábado 2. A resposta do regime é clássica: repressão violenta. Mais ainda agora que Maduro decidiu lançar sobre os manifestantes as temidas Forças de Ações Especiais (Faes), braço da polícia treinado para atirar e matar, como se faz numa guerra.
Analistas suspeitam que o uso das Faes neste momento seja resultado da falta de confiança de Maduro na fidelidade absoluta das Forças Armadas — nos atos de dois anos atrás, ele acionava a Guarda Nacional Bolivariana, um contingente militar. Criadas depois da onda de passeatas daquela época, as Faes tinham como missão original combater o narcotráfico e as gangues que infestavam as favelas de Caracas. “Onde elas entram, ocorre um massacre. Não foram treinadas para lidar com manifestações”, alerta Keymer Ávila, da ONG de direitos humanos Provea, que contabiliza cerca de quarenta mortos desde janeiro.
De preto no uniforme, no capacete e na touca que só deixa os olhos de fora, os policiais das Faes circulam de motocicleta, fortemente armados, e concentram sua ação em torno de favelas e na periferia, antigos redutos chavistas. Além de reprimirem nas ruas, costumam entrar nos casebres de suspeitos de apoiar protestos, levá-los a um beco e atirar neles à queima-roupa — exatamente o mesmo modo de operação contra bandidos. Há favelas em Caracas onde impera um toque de recolher informal: em dia de manifestação, ninguém sai depois de escurecer por medo da repressão letal.
Calcula-se que cerca de 1 500 homens integrem as Faes. Eles passam por treinamento de seis meses na Universidade Nacional Experimental da Segurança, academia criada pelo fundador da República Bolivariana, Hugo Chávez. Lá aprendem a matar e recebem intensa doutrinação ideológica. “As Faes têm alta capacidade ofensiva, útil para fins políticos. Trabalham com o terror e intimidam a população”, diz o venezuelano Andrei Pont, diretor da argentina Coordenadoria Regional de Investigações Econômicas e Sociais (Cries).
O comandante da força não é conhecido, e a página das Faes no Instagram (sim, existe uma) não cita nomes. Nela, um oficial de rosto coberto, em vídeo, apareceu recentemente pedindo “lealdade absoluta a Maduro neste momento de extrema dificuldade”. De fato, a crise é grave e não dá mostras de se amainar. Ao lado do ditador permanecem a Assembleia Constituinte (que ele elegeu para esvaziar a Assembleia Nacional, da qual Guaidó tira sua sustentação legal), o Tribunal Supremo de Justiça, com juízes escolhidos a dedo, e — pilar imprescindível — as forças de segurança. Estas, no entanto, mostram rachaduras.
No mesmo sábado das grandes manifestações, o general Francisco Yánez, do alto-comando da Aviação Bolivariana, postou um vídeo no YouTube em que, de uniforme e em local desconhecido, rompeu com Maduro, reconheceu Guaidó e conclamou os colegas a fazer o mesmo. Antes dele, o adido militar da embaixada em Washington havia mudado de lado. Em janeiro, 27 membros da Guarda Nacional fugiram de um quartel levando armas. Acabaram presos. Em 2018, quase 200 militares foram acusados de conspiração e, nos últimos três anos, 10 000 pediram baixa.
A fidelidade militar a Maduro será posta à prova se a oposição levar adiante seu projeto de colocar caminhões carregados de alimentos, roupas e remédios em três pontos da fronteira, prontos para entrar na Venezuela. A ajuda vem dos Estados Unidos — aliados de primeira hora de Guaidó —, Canadá e União Europeia. Maduro rejeita qualquer auxílio — “Não somos mendigos”, diz. Se a guarda fronteiriça deixar o comboio passar, estará indo contra suas ordens, alargando a fissura desse alicerce. Se barrar (uma ponte na fronteira com a Colômbia foi bloqueada na quarta 6), enfrentará a fúria da população faminta e sem recursos. “Alguns militares, principalmente de patentes inferiores, poderão se lembrar de que a família está sofrendo”, ressalta Pont. A ação é polêmica — a Cruz Vermelha e a organização católica Caritas decidiram não participar, por discordarem do uso de ajuda humanitária para fins políticos.
Também têm fracassado as tentativas do regime chavista de levantar dinheiro vivo para pagar compromissos desde que os Estados Unidos, que compram 40% do petróleo venezuelano, bloquearam qualquer transferência de recursos ao país. Nos últimos dias, o Banco da Inglaterra recusou-se a disponibilizar 1,2 bilhão de dólares em barras de ouro venezuelanas estocadas em seu cofre e o Novo Banco, de Portugal, barrou a transferência de outro 1,2 bilhão de dólares para contas venezuelanas no Uruguai.
Enquanto isso, Guaidó prossegue com sua diplomacia de governante sem palácio, mas cheio de amigos. Os Estados Unidos estão organizando um fundo que lhe dará acesso aos ativos que bloquearam. Dezenove países europeus reconheceram seu mandato interino, unindo-se a quase todas as nações das Américas. Dos aliados que restam a Maduro, a Rússia não dá sinais de fraquejar, mas Guaidó, o negociador, já tratou de garantir a Moscou que seus investimentos na Venezuela vão prosperar sob um governo democrático. A China, que financia quase toda a dívida externa do país em troca de petróleo, continua batendo na tecla da neutralidade — que, neste momento, fala alto. No plano internacional, apoio irrestrito ao atribulado ditador só vem mesmo de Cuba e Nicarágua. E de Roger Waters, o ex-Pink Floyd, que foi ao Twitter conclamar: “Deixem os venezuelanos em paz. Eles têm uma democracia de verdade”. Com tijolos como esse, o muro de Maduro não deve aguentar muito.
“Contato permanente com o Brasil”
De um dia para outro, o desconhecido engenheiro Juan Guaidó, de 35 anos, deputado de uma Assembleia Nacional destituída de poder, declarou-se presidente interino e tornou-se a principal voz da oposição na Venezuela. Ao mesmo tempo em que costura apoios internacionais de todos os cantos, movimenta-se incessantemente pela Assembleia em discussões políticas e pelas ruas de Caracas, mobilizando a população em torno da volta à democracia com eleições livres. Nesta entrevista, por e-mail, concedida ao editor Fernando Molica, ele mantém o tom duro em relação ao regime de Nicolás Maduro e afirma que a queda da ditadura é questão de tempo.
Como o senhor vê a decisão do Tribunal Supremo de Justiça de investigá-lo, bloquear seus bens e impedir sua saída da Venezuela? Se não fosse pela dramática situação que nos rodeia, eu diria que é uma decisão risível. De qualquer forma, não é importante. Faz parte do assédio da ditadura, que quer pressionar e dobrar os líderes democráticos. Não há nada de novo aí. Nós, deputados da Assembleia Nacional, sofremos essa perseguição desde 2016. Tenho colegas presos e exilados. Hoje, voltam-se contra mim pela responsabilidade que carrego. Recorrem a esse tipo de pressão, mas não se atrevem a me deter. Vejo também no bloqueio de meus bens um grande cinismo por parte daqueles que acumularam enormes fortunas pessoais, que dilapidaram recursos que são de todos os venezuelanos e deles se apropriaram.
O governo Trump congelou bens e dinheiro da PDVSA, a petrolífera estatal venezuelana, nos Estados Unidos. Como o senhor avalia a medida? Uma das ironias do regime de Maduro é que ele se sustenta em um discurso antiamericano ao mesmo tempo em que vende petróleo aos Estados Unidos, há duas décadas o principal cliente do óleo venezuelano. O governo do presidente Donald Trump precisou encarar esta contradição: como apoiar a restituição da democracia na Venezuela ajudando economicamente o repressor? Sei que a decisão deles não foi fácil, ninguém queria, muito menos nós, venezuelanos. Mas a verdade é que Maduro não usa a renda do petróleo para beneficiar a população; ao contrário, usa-a para oprimi-la. Ele e seus parceiros esbanjam e roubam. Em um cenário sem Maduro, nossa posição será aplicar esses recursos para recuperar a economia e, em vez de sustentar a ditadura, restaurar a democracia.
O estrangulamento das finanças venezuelanas por parte dos Estados Unidos deve apressar o fim do governo Maduro? Acredito que a medida terá um grande impacto sobre o regime e, sim, vai acelerar seu fim. De minha parte, tomarei todas as precauções para proteger os ativos da PDVSA nos Estados Unidos, ativos esses que nos ajudarão a recuperar a economia venezuelana nos próximos meses e anos.
O que ainda mantém Maduro no poder? Ele se mantém graças ao medo semeado entre membros das Forças Armadas e funcionários públicos por ação da polícia política, aconselhada pelo governo de Cuba. Também fica de pé graças à cumplicidade de pessoas do alto escalão político e militar que se beneficiaram durante todos estes anos do saque cometido contra a Venezuela. Além disso, pesam a favor de Maduro outras forças antidemocráticas, estranhas à Venezuela, que ingressaram no país para apoiar o regime.
O Alto-Comando das Forças Armadas diz que permanece ao lado de Maduro. O que o senhor está fazendo para mudar essa posição? Enviamos uma mensagem de respeito às Forças Armadas e aprovamos uma lei de anistia na Assembleia Nacional para facilitar a transição. Não pedimos aos militares que deem um golpe de Estado nem que apoiem algum grupo político. Isso não. O que exigimos é que respeitem e façam cumprir a Constituição. Eles devem lealdade à Venezuela, não a um homem.
O senhor pode explicar melhor a relação dos militares com o atual governo? É evidente a presença de certos generais, não todos, em negócios lucrativos concedidos pela ditadura e na administração de empresas estatais, como a PDVSA. Enquanto um punhado desfruta privilégios, os demais membros da instituição — oficiais médios e inferiores e a tropa — mal conseguem alimentar a si mesmos e à família. Esses generais são um obstáculo para que as Forças Armadas Nacionais deem o passo decisivo.
Com que frequência o senhor tem conversado com o governo Bolsonaro? Tenho contato permanente com o governo do presidente Jair Bolsonaro. Brasil e Colômbia são nossos vizinhos mais importantes. Sem o apoio brasileiro, o cerco internacional à Venezuela teria sido muito diferente. A posição do Brasil no Grupo de Lima e na OEA (Organização dos Estados Americanos) influenciou até mesmo na atitude da China e da Rússia em relação à Venezuela.
O senhor enxerga a possibilidade de retorno dos venezuelanos que estão hoje no Brasil? O que posso dizer é que, muito em breve, quando o governo de transição se consolidar, o Brasil terá na Venezuela um vizinho que fornecerá soluções, e não dificuldades.
Em quanto tempo a transição deve se consolidar? O desenlace desta situação pode acontecer a qualquer momento.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
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