A misteriosa ‘milícia’ russa que ganhou fama em meio à guerra na Ucrânia
Enfim os russos conquistam uma cidadezinha ucraniana e quem canta vitória é o Grupo Wagner, bando de mercenários que trabalha para Putin
Com apenas 10 000 habitantes, a cidadezinha de Soledar, que vive da extração de sal no disputado leste da Ucrânia, viu-se no centro de combates encarniçados na guerra empreendida pela Rússia no país neste início de ano. “Qual o objetivo deles lá?”, perguntou o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, expressando uma dúvida recorrente. Ao que parece, a importância estratégica de Soledar está na sua desimportância: encontrava-se desguarnecida e, embora as forças de Kiev tenham acorrido em sua defesa, a maior parte da cidade foi ocupada pelos russos, que ali tiveram sua primeira vitória militar nos últimos seis meses. Na verdade, por tabela, já que as Forças Armadas só têm agido a distância: nos últimos dias, seus mísseis destruíram um prédio em Dnipro, matando cinquenta civis, e suspeita-se de sua mão na queda de um helicóptero perto de uma creche em Kiev que fez dezesseis vítimas, entre elas três crianças e o ministro do Interior, Denys Monastyrskyi.
Na ocupação de Soledar, quem cantou vitória foi o sombrio Grupo Wagner, um aglomerado de mercenários que trabalha para o presidente Vladimir Putin em conflitos mundo afora. Depois de passar anos envolto em mistério, o grupo ganhou em setembro um líder com nome e sobrenome: Yevgeny Prigozhin, oligarca aliado de Putin. É Prigozhin quem aparece agora nas redes sociais bradando que Soledar caiu por obra de seus mercenários e sem a ajuda do Kremlin (que não gostou nada da declaração).
Oficialmente, o Wagner não existe. “Do ponto de vista legal, não há uma organização única com esse nome”, diz Vanda Felbab-Brown, pesquisadora de segurança da Brookings Institution. Sob seu guarda-chuva abriga-se uma rede de empresas e milícias paramilitares envolvidas em perseguição e repressão de opositores, disseminação de desinformação e combates. Identificado pela primeira vez exatamente na Ucrânia, quando colaborou na anexação da Crimeia, em 2014, o grupo teria sido batizado em homenagem ao compositor Richard Wagner, o preferido de Hitler — ambos ídolos de um de seus primeiros comandantes, o ex-oficial da inteligência militar Dmitry Utkin.
A teia de paramilitares se ramificou para a Síria — ajudou o presidente Bashar al-Assad na sangrenta guerra civil — e de lá para a África, onde atua, em troca de polpuda remuneração, em uma dúzia de países, entre eles Líbia, Sudão, Madagascar, Moçambique e República Centro-Africana. No continente, o Wagner sustenta ditadores pró-Moscou, mantém bases de treinamento e depósitos de armas e munições e controla, com o aval da Rússia, a mineração de pedras e metais preciosos. Calcula-se que tenha hoje cerca de 60 000 combatentes, entre ex-militares russos e outros países e, mais recentemente, presidiários que lutam na Ucrânia com a promessa de liberdade (segundo Felbab-Brown, são “bucha de canhão”).
As conexões do grupo com o Kremlin são propositadamente vagas, até porque as leis russas não permitem a criação de empresas privadas para fins militares. “Os mercenários agem em prol do governo. Seus líderes têm certo grau de autonomia, mas seguem os objetivos de política externa de Moscou”, explica Sergey Sukhankin, pesquisador da Jamestown Foundation. Pôr mercenários para fazer o trabalho sujo dificulta a atribuição de crimes de guerra às tropas regulares e cria um vácuo de responsabilidade sobre os mortos em combate — desde que permaneçam nas sombras. Prigozhin, líder e principal financiador do Grupo Wagner, começou como dono de restaurante, virou o “chef de Putin” ao obter um contrato para atender o Kremlin e se tornou amigo pessoal do presidente. “Ele está aproveitando as falhas da Rússia na guerra para atingir objetivos políticos pessoais”, diz Joana Pereira, pesquisadora do Royal United Services Institute. Periga o Wagner, sempre acionado como solução, se tornar um problema — mais um para Putin.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825