A carta branca que Xi Jinping vai ganhar do Partido Comunista da China
O presidente terá passe livre para tocar os planos de impor sua ideologia à população e superar 'hostilidades' no cenário internacional
Em uma coreografia de alta precisão típica das cerimônias chinesas, mulheres de jaqueta vermelha abasteceram de chá as xícaras pousadas em frente aos lugares vips do Grande Salão do Povo, em Pequim. Era o prelúdio da abertura do 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCC), monumental encontro de 2 700 delegados realizado a cada cinco anos para traçar os caminhos que o país pretende seguir. Desta vez, no entanto, um propósito maior se alevanta: o ponto máximo da semana de discursos e conferências que se iniciou no domingo 16 é a confirmação do terceiro mandato do presidente Xi Jinping, que já está há dez anos do poder e que, graças a uma mudança de regras em 2018, lá poderá permanecer por mais uma década.
Com a benção do PCC, Xi garante passe livre para plantar na nova ordem mundial o país com que sonha: uma superpotência ordeira e nacionalista internamente, dominante economicamente e capaz de enfrentar e superar qualquer tipo de “hostilidade” internacionalmente. “Xi já tem sua influência consolidada, mas a reunião fará dele o líder mais poderoso da China desde Mao Tsé-tung”, diz Allen Carlson, professor do Centro de Estudos Internacionais na Universidade Cornell. Com mais este mandato, Xi, 69 anos, se candidata ao posto de dirigente mais longevo depois de Mao (27 anos), superando Deng Xiaoping (onze anos).
A China de hoje é muito diferente daquela governada pelos dois líderes do passado, mas Xi, o timoneiro do século XXI, pesca inspiração nos mares que eles navegaram. Da era maoísta, quer recuperar o controle absoluto e total sobre os corações e mentes chineses. Do pragmático Deng, arquiteto da abertura da economia para o exterior sob a máxima de que “não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos”, pretende multiplicar os investimentos na indústria, só que reajustando o foco para a autossuficiência em todas as etapas da cadeia tecnológica.
Em seu discurso de duas horas na abertura do congresso, o presidente chinês proclamou que “a segurança nacional é a base do rejuvenescimento nacional” — uma das 26 vezes que mencionou a expressão “segurança nacional”. Nascido em família da aristocracia do partido, Xi chegou ao poder promovendo uma vasta caça aos corruptos e acendeu a esperança de uma era de menos censura e mais liberdade individual. Durou pouco. Obcecado em preservar a predominância do PCC sobre o cotidiano dos cidadãos — e impactado pela implosão da antiga União Soviética —, pôs em marcha um esquema de repressão que acha essencial para a sobrevivência do regime. “Ele acredita que, enquanto o partido permanecer no controle, tudo ficará bem”, afirma Carlson.
A China ostenta o maior sistema de monitoramento pessoal de que se tem notícia no mundo, com câmeras e outros equipamentos movidos a inteligência artificial. A imprensa toda apoia o regime, a expressão artística é duramente reprimida e a internet funciona sob rigoroso controle — apertos saudados por Xi em seu discurso como “uma transformação fundamental na esfera ideológica”. A insistência no projeto de Covid Zero, que fecha fábricas e cidades inteiras a cada novo caso, faz parte desse arcabouço patriota e foi citada no Congresso como um trunfo. “Atingimos significativos resultados positivos”, disse Xi, sinalizando que as quarentenas e a testagem em massa vão continuar.
Ao mesmo tempo, a liderança comunista trabalha pela implantação a toque de caixa de uma “comunidade de nacionalidade chinesa” que pretende unir a cacofonia de línguas, etnias e tradições do imenso país. Os espetáculos ufanistas se multiplicam e a história é recontada de forma a dourar a agenda autoritária com o brilho de valores seculares. “Xi apela a uma identidade cultivada em 5 000 anos de história para estimular sentimentos que assegurem a influência política do regime”, diz Howard Wang, cientista político do instituto Rand.
Nesta China em que quer deixar sua marca, Xi precisa se equilibrar na linha fina entre o nacionalismo exacerbado e uma ambiciosa investida internacional, que ficou ainda mais premente diante das previsões de crescimento de 3,3% em 2022 — a menor taxa em quatro décadas, tirando 2020. Em outro sinal de nuvens no plano econômico, o governo adiou indefinidamente a publicação dos últimos índices financeiros. A desaceleração da locomotiva chinesa torna mais difícil sustentar os megaprojetos de infraestrutura destinados a moldar uma esfera de influência nos países em desenvolvimento. O comércio bilateral entre a China e a América Latina atingiu 400 bilhões de dólares em 2021 e com a África bateu em mais de 250 bilhões de dólares — nesse continente, o investimento chinês cresceu mais de cinquenta vezes nas últimas duas décadas.
Trata-se de uma política calculada não apenas para fazer da China uma superpotência, mas também para legitimar sua força na geopolítica mundial diante de um fato novo, destacado no discurso: a aberta intenção dos Estados Unidos de emperrar as pretensões chinesas. Ao mesmo tempo que celebrou o retorno de Hong Kong ao guarda-chuva de Pequim, obtido à custa de estrangulamento econômico e repressão, Xi reiterou a reivindicação de que Taiwan siga a mesma trilha — sem excluir o uso da força. Foi um dos muitos recados a Joe Biden, que se comprometeu a garantir a autonomia da ilha e que acaba de anunciar uma ofensiva para implodir a dependência mundial de manufaturas chinesas. Sem citar pelo nome o adversário americano, Xi alertou: “Cuidado com os perigos escondidos na paz. Consertem os defeitos da casa antes que a chuva chegue e preparem-se para enfrentar o árduo teste de ventos e ondas fortes”. Com o novo mandato (que começa a vigorar em março) e o hashi e o tofu na mão, o presidente segue mais firme ainda na intenção de fazer da China de Xi o país mais poderoso do mundo.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812