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Pesquisadora mostra que Machado de Assis pode ter cometido plágio

Crônica publicada pelo escritor em 1860 se assemelha a obra lançada na França dois anos antes

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 ago 2024, 08h56 - Publicado em 26 ago 2024, 18h00

Um artigo recente aponta um suposto caso de plágio protagonizado por Machado de Assis. Diz respeito a um texto publicado pelo autor no periódico A Marmota, do Rio de Janeiro, quando tinha 21 anos. Quem expõe o caso e suas evidências é Élide Valarini Oliver, professora de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, nos Estados Unidos. Élide é cautelosa, ressente-se de sensacionalismo e fala até em “intertextualidade que transgride vários dos pressupostos que se assumem como característicos dessa intervenção textual”.

“Forma peculiar de tradução” é outro eufemismo, na tênue divisória entre ironia e polidez. Entretanto, não se pode escapar do vocábulo preciso. Plágio.

O texto é “Carniceria a Vapor”, publicado em 1860. Nele, o leitor é presenteado com a descrição sanguinolenta de um matadouro de porcos nos Estados Unidos que lança mão da moderna maquinaria a vapor em sua produção. Não é Machado que esteve lá e voltou para nos contar, mas sim um certo M. Commetant. Seu é o relato detalhado no qual o brasileiro se baseia para escrever a crônica.

Na verdade, isso é o que Machado diz, não o que pratica. Élide mostra que a fonte utilizada por Machado foi, na verdade, o quarto volume do periódico L’Année Scientifique et Industrielle. É uma publicação francesa que comenta o livro “Trois ans aux États-Unis. Études des moeurs et coutumes américaines”, lançado em 1858 pelo compositor, musicólogo e escritor de literatura de viagem Oscar Comettant (a grafia do sobrenome do autor foi se metamorfoseando entre as idas e vindas pelo Atlântico).

Evidências, nas palavras de Élide: “O emprego de M. (Monsieur) em Machado indica, obviamente, a fonte francesa do autor, o que não é novidade, mas é a coincidência de termos entre o texto do periódico e o de Machado que indica a fonte imediata, que não é a obra de Comettant, como anuncia a crônica, mas o periódico que resume a notícia dada por Comettant”.

No texto de Machado, materializam-se trechos que reescrevem o corpo principal do artigo do periódico francês, mas também suas notas de rodapé, nas quais momentos do texto original de Comettant são reproduzidos entre aspas. Élide se questiona entre o plágio, a intertextualidade absoluta, a cópia e uma tradução na qual se escamoteia o autor.

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Não é uma versão oitocentista de um descarado ctrl+c, ctrl+v, é claro. Existem variações estilísticas, sinônimos, troca de imagens. Investigadora cuidadosa, Élide pondera se isso basta para que Machado considerasse o texto seu, livre para assinar apenas M. A. e dispensar quaisquer aspas.

Queremos ver, certo? Primeiro, o periódico francês:

“A usina do Sr. Boviello, diz o Sr. Oscar Commettant em sua obra sobre os Estados Unidos, se compõe de quatro grandes corpos de edifícios ligados todos por pontes suspensas. Mais longe, como planícies vivas que vai a devorante máquina ceifar, estão encerradas inumeráveis varas de porcos pertencendo a diferentes proprietários que os levam a essa usina como levamos o trigo ao moinho para moê-lo.”

E agora, Machado:

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“O estabelecimento de que vamos tratar, vasto, como deve de o ser para estrangular diariamente centenas de porcos, compõe-se de quatro extensas casas que se comunicam entre si por pontes pênseis. Ao redor, e em todos os sentidos, se distinguem diversos cercados, fechados, onde formigam inumeráveis porcadas pertencentes a diferentes criadores.”

Obviamente, um simples trecho para declarar culpa. Mais uma prova, portanto. Novamente começando pelo texto francês:

“A um sinal do mecânico chefe, levanta-se uma báscula que se comunica com a entrada de um primeiro compartimento da máquina chamado de degoladouro, e a operação de destruição começa. Os porcos, muito apertados uns contra os outros, vendo uma saída, se precipitam no corpo do estabelecimento até um corredor estreito, onde eles não podem senão passar um a um. Parados ali um instante, eles têm o pescoço atravessado por facas enormes movidas pelo vapor como todo o resto da máquina. O porco, degolado em menos de um segundo, é preso pelas pernas traseiras e arrastado violentamente por grampos que o levantam a uma certa altura. Lá, ele fica suspendido um instante e passa mais além por uma balança móvel, sem cessar em movimento, que mergulha o animal num poço de vapor e acaba por sufocá-lo escaldando-o.”

Eis Machado:

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O engenheiro em chefe faz um sinal; abre-se logo a comunicação do exterior para o primeiro compartimento da máquina chamada degoladouro. O ingresso para esse compartimento é feito por um estreito corredor, que se afunila e só pode chegar ao compartimento de que se trata um porco por sua vez. Ao termo desse corredor são os porcos obrigados a parar, e logo com rapidez de raio, enormes facões manejados por um punho tão forte, como o do vapor, os traspassem certeiramente a sangrar pelo coração. Quanto pode a mecânica! Isso feito, sem demora, cada porco é agarrado pelos quartos traseiros por grampos, e assim violentamente levantados e conduzidos em enfiada, como um rosário, para serem mergulhados em um vasto reservatório de água fervendo, donde saem para sofrerem o processo final da pelação entre grandes escovas.”

Comparações como essas se multiplicam e Élide não pode escapar de ver que a estrutura da crônica de Machado é a mesma do relato de Comettant. “Uma ponta importante desse novelo é a questão da citação em tudo isso”, escreve a professora. Ou melhor, a ausência de citação. Parágrafo por parágrafo os textos se acompanham e o resultado, para Élide, é uma cópia com intervenções e variações “nem sempre felizes”.

“Se lemos primeiramente o texto de Machado, sem dúvida, ele impressiona. Mas, comparado ao texto testemunhal de Comettant, a crônica de Machado perde em brilho de presença. Não consegue manter a mesma força do testemunho.” Mas se os textos não são exatamente idênticos, se Machado faz alterações, cria novas imagens – ainda que infelizes –, não é obra nova e sua?

“Pelos critérios atuais, justamente esse tipo de acréscimo textual extrínseco constituiria mais uma prova de que se trata de um plágio, disfarçando-se de texto original”, escreve Élide. “Nada denuncia melhor o plágio do que o apagar dos traços que levam ao texto original através de mudanças cosméticas, como o emprego de sinônimos, deslocamentos de sentenças, mudanças no ordenamento de parágrafos, enquanto que o teor argumentativo do texto original permanece inalterado.”

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Julgamos Machado por tais critérios atuais? Ou é necessário compreender o significado de tradução no século 19? Ou mesmo, como faz Élide, se voltar para T. S. Eliot, Jorge Luis Borges, Aristóteles ou Platão e suas reflexões sobre imitação e roubo, traduções e transformações, mímesis e melhoramentos? A pesquisadora indica todos esses caminhos, certa de que a resposta não é tão simples e não se deve simplesmente jogar Machado aos porcos.

Reportagem originalmente publicada em Jornal da USP

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