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As descobertas de Mário de Andrade em mal-humorada viagem pela Amazônia

Há 97 anos, o modernista saiu para desbravar o Brasil em expedição que agora ganha novas camadas de interpretação

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 nov 2024, 18h47 - Publicado em 4 nov 2024, 18h26

Há um século, em 1924, Mário de Andrade escreveu ao amigo Carlos Drummond uma carta em que declarava: “É no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei”. E foi justamente essa paixão que o guiou, mesmo a contragosto, aos confins do país.

Em 1927, aos 33 anos, pôs-se a bater pernas em uma viagem de dois meses pela Amazônia. A essa altura, ele já havia se consolidado como um dos principais nomes do modernismo, movimento que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922, marco na valorização da arte brasileira. Com essa viagem, seu desejo era apenas um: dar corpo, nome e sentimento ao povo que constituía o Brasil. Os desafios, porém, foram um pouco mais numerosos. 

O mau agouro já se revelava na partida. Ainda no Porto, prestes a embarcar, Mário descobriria que ao invés de escritores e pensadores, teria apenas a companhia de sua mecenas, Olívia Guedes Penteado, organizadora da expedição, e duas adolescentes. “Toda a gente roera a corda!”, anotou ao perceber que foi o único dos convidados a levar a ideia a cabo. Logo ele, que não fora feito para viajar, como dizia a quem quisesse ouvir. Mas era tarde para voltar atrás.

Dos relatos das viagens “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”, como ele mesmo escreveu, surgiu “O Turista Aprendiz”, livro em que Mário expõe com curiosidade o Brasil que encontrou sob o véu da mata.

No Norte quase desconhecido, ele visitou a Ilha de Marajó, esteve na fronteira com a Bolívia e, pela primeira (e única) vez, saiu do Brasil: foi até Iquitos, no Peru. Retornou para casa, na Barra Funda, em São Paulo, sem saber se gostava ou não de açaí. “Não chega a ser ruim. É um gosto de mato pisado”, descreveu. 

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Mas tudo bem, havia outros prazeres menos duvidosos. “No almoço o peixe tambaqui, ótimo, de uma delicadeza superfina. E tartaruga com recheio da mesma, obra-prima. Pelas duas horas portaremos em Itacoatiara, primeira cidade do estado do Amazonas. Vista em sonhos. É a mais linda cidade do mundo, só vendo”, anota maravilhado em uma entrada.

O relato de Mário mistura amargura e encantamento, revela amores não vividos, tribos inexistentes, jacarés, vitórias-régias e rios caudalosos em descrições onde o que soa como ficção pode ser a mais pura verdade e o que parece verdade pode não passar de arrebatamento do autor. “Ele vai misturando os fatos improváveis da Amazônia com as intenções da cabeça dele e é capaz da gente escorregar”, diz Flora Thomson-DeVeaux. “É um livro muito particular, não se encaixa muito em nenhum gênero, justamente porque é como estar ao lado do Mário ou dentro da cabeça dele”.

Um relato atemporal

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A narrativa superlativa, às vezes íntima, e muitas vezes mal-humorada encantou Flora, que traduziu o livro para o inglês. Depois do bem-sucedido trabalho com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, a pesquisadora e podcaster americana com sotaque carioca apresentou as contradições amazônicas pelo olhar de Mário aos leitores estrangeiros em 2023. 

O lançamento no exterior coincidiu com outra tradução, a de “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, um clássico modernista do escritor, traduzido por Katrina Dodson. “Acho que eles se interessaram pelo ‘Turista Aprendiz’, justamente por ter esse elemento da Amazônia, que desperta interesse nos Estados Unidos. É um olhar bem diferente do que o público gringo está acostumado”, diz Flora. “E foi muito bom conseguir lançar com a tradução da Katrina, porque a tradução anterior de Macunaíma, do anos 1980, é uma coisa irreconhecível”.

 

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Flora Thomson-DeVeaux, tradutora de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis e de “O Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade, para o inglês — (Tinta-da-China/Reprodução)
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No Brasil, a obra acaba de sair em nova edição pela Tinta-da-China, com capa dura, fotos originais da expedição e mapas detalhados do percurso. Flora quem assina a organização e o prefácio do novo volume. A publicação, lançada originalmente em 1976, 31 anos após a morte do autor, inspira um filme dirigido por Murilo Salles, também recém-lançado. No começo desse ano, as viagens foram interpretadas no samba-enredo da Mocidade Alegre, que levou o título do carnaval paulista. Pouco antes, foram o tema central de “Os crepúsculos não cabem no mundo”, livro de Eduardo Vessoni, em que além das peripécias na Amazônia, há as escapadas para a fazenda de Araraquara e as expedições por Minas Gerais e pelo Nordeste, que juntos renderam um dos maiores inventários das manifestações culturais brasileiras já feitos. 

O interesse nas viagens pela Amazônia quase intocada de Mário de Andrade é sintomático e contrasta com a realidade da floresta atual. “É muito cruel ler esse livro com o olho nas manchetes de hoje”, conclui Flora. “Ao ler o ‘Turista Aprendiz’, dá para ter uma noção, mesmo quem nunca pôs os pés na Amazônia, do que ainda há para perder”. 

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“Manhã fresca. Um bando de papagaios nos recebe, falando ‘bom dia’. De vez em longe uma garça. Estreitos de Breves. Vida de bordo. Essas coisas bobas que fazem sublime a viagem, por exemplo: um boto brincando n’água. Um boto brincando n’água! Que maravilha! Paisagens lindas. Noite sublime de estrela”, escreve ele sobre as paisagens, agora ameaçadas. 

Se Mário de Andrade, em sua taciturna fúria antiviajante descobriu um Brasil praticamente desconhecido pela maioria dos brasileiros, resta a nós descobrirmos Mário e tudo que suas epopéias nos ensinam sobre essa terra.

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