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“Ali aprendemos o valor da vida”, diz sobrevivente da Tragédia dos Andes

Tintin, personagem real retratado em Sociedade da Neve, fala à VEJA sobre os bastidores do acidente e reflete sobre como a obra ajudou a humanizar a história

Por Ligia Moraes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 24 jun 2025, 10h30

Em entrevista à Veja, Antonio Vizintín, conhecido como Tintín, relembra os 72 dias que passou preso na Cordilheira dos Andes após a queda do voo 571 da Força Aérea Uruguaia, em 1972. O acidente, que matou 29 pessoas e deixou 16 sobreviventes, inspirou livros, filmes e séries, incluindo o recente sucesso da Netflix A Sociedade da Neve. Vizintín veio ao Brasil para contar sua história em uma palestra no Insper, em São Paulo, e conversou com a reportagem de forma detalhada, refletindo sobre os momentos mais extremos da experiência, as escolhas difíceis e o impacto psicológico que carrega até hoje.

Na conversa, ele também comenta a forma como a imprensa tratou o caso ao longo das décadas, muitas vezes focando apenas no canibalismo, e fala sobre o poder da solidariedade, da organização coletiva e da amizade para seguir em frente mesmo nas circunstâncias mais brutais

Você já contou essa história inúmeras vezes. Há algo que sente que ainda não foi compreendido sobre o que vocês viveram?
Sim. O que muitas vezes não se entende é a complexidade humana do que vivemos ali. Quando as pessoas falam da tragédia dos Andes, pensam apenas na sobrevivência, nas decisões extremas, mas não enxergam o que houve internamente. Não foi só fome ou frio — foi dor, medo, culpa, fé, esperança, tudo ao mesmo tempo. Foi uma viagem muito profunda para dentro de nós mesmos. E isso, às vezes, fica de fora. Além disso, poucos entendem que nós éramos apenas adolescentes. Tínhamos 17, 18, 19 anos. Estávamos aprendendo a viver quando tudo isso aconteceu.

O que passava pela sua cabeça nos primeiros dias após o acidente? Houve esperança ou a desesperança tomou conta logo?
No início, a esperança era grande. Achávamos que nos encontrariam em pouco tempo. Cada barulho de avião no céu era uma explosão de expectativa. Mas, com o passar dos dias e nenhuma notícia, o desespero começou a se instalar. Foi uma queda lenta e dolorosa da esperança à realidade. Ainda assim, nos agarramos a qualquer possibilidade de sobrevivência. Sempre havia alguém dizendo: “Vamos resistir mais um dia”. E começamos a criar uma rotina, a estabelecer pequenas metas diárias: manter o abrigo, racionar alimentos, cuidar uns dos outros. Isso nos ajudou a manter a mente ocupada.

Como foi a organização interna do grupo naquele contexto tão adverso? Surgiu algum tipo de liderança espontânea?
Sim, surgiram lideranças naturais. Pessoas que, mesmo sem querer, foram assumindo responsabilidades. Roberto Canessa e Fernando Parrado, por exemplo, sempre foram muito ativos. Mas era uma liderança compartilhada. Havia diálogo, divisão de tarefas, um esforço para manter a ordem mesmo em meio ao caos. Todos tinham consciência de que, sem cooperação, ninguém sairia vivo. Criamos uma espécie de micro sociedade, com regras e acordos, e isso foi essencial para manter a sanidade.

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Te peço licença para abordar um tema delicado. Como foi o processo de aceitar coletivamente a decisão de se alimentar dos corpos dos companheiros falecidos?
Foi o momento mais difícil de toda a nossa experiência. Muito mais do que frio ou dor física. Mas era a única forma de continuar. A decisão não foi imposta — foi discutida, refletida, com muito sofrimento. Pensamos muito nas famílias, na religião, na ética. No fim, entendemos que era uma doação. Eles tinham morrido, e graças a eles, nós poderíamos viver. Foi doloroso, mas necessário. E tudo foi feito com respeito e um silêncio profundo. Nenhuma decisão foi tomada de forma leviana.

Hoje em dia, sente que essa decisão é mais compreendida pelas pessoas?
Acredito que sim. Com o tempo, o mundo evoluiu na forma de entender contextos extremos. Mas ainda há muito sensacionalismo. Muita gente se fixa no canibalismo como se fosse a parte mais relevante da história. E não é. O que deveríamos destacar é a união, o espírito de grupo, a resiliência. Sobrevivemos porque fomos um só corpo. As famílias dos que morreram nos apoiaram muito, e isso fez toda a diferença. Elas entenderam o que aconteceu de forma muito mais humana do que parte da opinião pública.

Quando tomaram essa decisão, houve dúvidas sobre como proceder? Como organizaram isso de forma justa?
Havia muitas dúvidas, claro. Não sabíamos como fazer, quem começaria, como respeitar os outros. Foi decidido que só recorreríamos a isso quando todos estivessem de acordo. E tudo foi feito com muito respeito, muito silêncio. Era uma espécie de pacto. Havia uma lista com os nomes dos falecidos, sabíamos quem era quem. E nunca esquecemos que eram nossos amigos. Houve um profundo cuidado para que ninguém se sentisse forçado ou excluído.

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Em que momento você sentiu que havia uma chance real de sair dali com vida?
Quando o Parrado e o Canessa partiram em busca de ajuda. Ver os dois indo embora foi um misto de medo e fé. Eles levavam a esperança de todos nós. E quando o helicóptero finalmente chegou, eu lembro de pensar: “Conseguimos. Estamos vivos.” Foi um momento de muita emoção e também de incredulidade. Não sabíamos se era sonho ou realidade. Foi o fim de um pesadelo.

Como foi para você ver a cobertura da imprensa na época?
Foi difícil. Nós voltamos ao mundo e percebemos que, enquanto vivíamos o inferno, do lado de fora estavam criando versões, julgando nossas decisões. Muitos focaram só no sensacionalismo. Fomos chamados de bárbaros, de monstros. Isso nos machucou muito. Poucos se preocuparam em entender a profundidade da experiência. Havia uma sede por manchetes, por escândalos. Tivemos que aprender a lidar com isso.

Você acha que o filme A Sociedade da Neve conseguiu retratar melhor essa complexidade?
Sim. Pela primeira vez, senti que nossa história foi contada com verdade e humanidade. O diretor J.A. Bayona teve muito respeito por nós. O filme não reduz nossa experiência a uma anedota. Mostra o medo, a dor, a amizade, a força coletiva. Me emocionei muito vendo. E ver minha própria história sendo representada na tela foi algo indescritível. Além disso, o filme está permitindo que uma nova geração conheça essa história.

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Você ainda mantém contato com os outros sobreviventes? Como é essa relação hoje?
Sim, seguimos em contato. Criamos um laço que não pode ser desfeito. É como se fôssemos uma grande família. Nos encontramos, nos falamos, e sempre que possível, estamos juntos para compartilhar nossas vidas. Porque só nós sabemos, de verdade, o que aquilo significou. E quando nos reunimos, não precisamos explicar nada. Basta um olhar.

Por que você decidiu se tornar palestrante e contar essa história para outras pessoas?
No começo, eu não queria falar. Era doloroso demais. Mas com o tempo, percebi que havia um valor em compartilhar. As pessoas me ouviam e se emocionavam. Vi que minha experiência podia inspirar, ensinar. E hoje, quando subo ao palco, tento transmitir não a dor, mas a força que descobrimos em nós mesmos. É uma forma de transformar o trauma em algo positivo.

Que mensagem você gostaria de deixar ao público brasileiro, especialmente aos mais jovens?
Gostaria que as pessoas entendessem que a vida, às vezes, impõe desafios impensáveis. Mas sempre há uma força interior que pode nos mover adiante. E que, mesmo nos piores momentos, é a solidariedade, o olhar para o outro, que nos salva. Sozinhos, ninguém consegue. E não precisamos esperar uma tragédia para perceber isso.

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