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Uma Copa incômoda: polêmicas cercam o Mundial antes da bola rolar

Relatos de maus-tratos em trabalhadores e homofobia estão entre as denúncias em torno do evento

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h17 - Publicado em 18 nov 2022, 06h00

Toda Copa do Mundo e Olimpíada, desde sempre, são esponjas e espelhos de seu tempo — absorvem os humores da sociedade e refletem o momento histórico. Os Jogos de Berlim, em 1936, serviram de antessala para o nazismo, que começava a engolir a Alemanha e a Europa, e também de resposta, na figura do atleta negro Jesse Owens a peitar Adolf Hitler. O Mundial da Argentina, em 1978, no auge da ditadura sanguinária do ridículo general Jorge Rafael Videla, que funcionaria como ribalta para o governo de quepe, resultou no avesso, ao iluminar os porões do regime que desabaria. Mesmo no Brasil, durante a Copa das Confederações de 2013, em meio às manifestações populares de junho, ouviam-se brados retumbantes: “Imagina na Copa”, “não vai ter Copa”. Teve, em 2014, apesar de tudo, no prólogo do impeachment da presidente Dilma Rousseff e, por que não, na gênese de figuras excêntricas que, agora em 2022, vestiram a camisa amarela para bloquear caminhões nas estradas.

A Copa do Catar, que começará no próximo dia 20 de novembro, domingo, terá esse mesmo efeito catalisador, de carbono do planeta — mais até do que muitos outros eventos globais, não seria exagero dizer, dado o rebuliço que provoca desde sua escolha como sede, há doze anos. Até que a bola comece a rolar, entre vitórias e derrotas, glórias e dramas — e aí então teremos futebol, com Neymar, Messi e cia. —, seria correto considerá-la um incômodo, um estorvo, um imenso problema. É a Copa que muita gente séria gostaria que não houvesse.

arte mapa Catar

Com jeito sonso, como se não tivesse nada a ver com nada, o ex-presidente da FIFA, o suíço Joseph Blatter, disse na semana passada que a escolha do Catar, em 2010, foi um erro — ele demorou doze verões para emitir uma opinião, para fazer um mea-­culpa. “É um país muito pequeno, o futebol e a Copa do Mundo são grandes demais para isso”, disse. O Catar, uma península à margem do Golfo Pérsico, tem metade do tamanho do estado de Sergipe. A maior distância entre os oito estádios construídos para o torneio é de 71 quilômetros, pouco mais de uma hora e meia de carro (veja no quadro). É ingenuidade, ou má-fé, resumir os obstáculos a uma questão geográfica. Não é.

PROGRESSO... - Prédios em Doha prontos para os turistas: petrodólares -
PROGRESSO… - Prédios em Doha prontos para os turistas: petrodólares – (Noushad Thekkayil/EPA/EFE)
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A escolha em si foi alvo de denúncias de corrupção, que ainda estão sendo investigadas. O governo catari — uma monarquia absolutista — teria pago o equivalente a 3,8 bilhões de reais à Fifa para comprar votos em favor de sua candidatura, publicou o jornal britânico The Times. A oferta, que envolvia a emissora de televisão Al Jazeera, de controle estatal, teria sido feita 21 dias antes de a entidade máxima do futebol mundial definir o país-sede. Nem é o caso de demonizar só o Catar, como se fosse um caso excepcional de irregularidades. Como mostra a série Esquemas da Fifa, na Netflix, desde os anos 1970 a “ONU do futebol” montou uma engrenagem de interesses financeiros que se assemelha a um cartel. Mesmo a Copa de 2010, na África do Sul, celebração da derrota do apartheid, com Nelson Mandela ainda vivo, foi parcialmente manchada com a revelação de propina oferecida e aceita em troca de votos.

...E ATRASO - Mulheres cobertas: um cotidiano absurdamente machista do país -
…E ATRASO - Mulheres cobertas: um cotidiano absurdamente machista do país – (Giuseppe Cacace/AFP)

Definido o Catar, um ex-vilarejo de pesca sentado em cima da riqueza de lençóis de petróleo e de gás, a primeira briga foi em torno do período do ano para os jogos. Fazê-los em junho e julho, como sempre, ao fim da temporada europeia, seria inviável, dado o calor, que pode chegar a mais de 40 graus no deserto — e, então, pela primeira vez, uma Copa foi empurrada para o fim do ano, com temperaturas locais mais amenas, mas que ainda assim podem chegar a 25 graus. De qualquer modo, como o seguro morreu de velho, um dos grandes personagens da aventura no deserto é Saud Abdulaziz Abdul Ghani, conhecido como “Doutor Frio”, um Professor Pardal da Universidade do Catar que desenvolveu um sistema de resfriamento das arenas supostamente menos daninho ao ambiente (e que os especialistas internacionais, é claro, criticam). “Os torcedores e os jogadores terão as melhores experiências de suas vidas”, diz Ghani.

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É possível que a experiência seja mesmo boa, mas convém não esquecer a estrada que os trouxe até aqui, feita de pedregulhos que não podem ser ignorados e que nem os 200 bilhões de dólares gastos na empreitada de construir uma superestrutura conseguem apagar. A Anistia Internacional divulgou sucessivos e severos relatórios. Diz um deles: “Milhares de trabalhadores deparam com problemas como atraso ou não pagamento de salários, negativa de dias de descanso, condições de trabalho inseguras, impossibilidade de troca de trabalho, acesso limitado à Justiça. Além disso, milhares de mortes seguem sem investigação. Em última análise, os abusos dos direitos humanos persistem em uma escala significativa hoje”. A Anistia admite ter havido progresso nos últimos anos, mas insuficiente. Sugeriu, então, que seja organizado um fundo internacional de 440 milhões de dólares de compensação ao exército de operários que teria sofrido abuso, diuturnamente, em condições insalubres em plena pandemia. O valor foi estimado a partir dos dólares oferecidos às 32 delegações classificadas. “O passado não pode ser reescrito, mas a compensação é o mínimo que deve ser feito”, diz Steve Cockburn, vice-diretor de economia e justiça social da Anistia. Os responsáveis pela organização da competição rechaçam as denúncias, e dizem haver oportunismo, dada a proximidade dos Jogos. Em nota enviada a VEJA, o Comitê Supremo para a Entrega e Legado informa, com veemência: “Desde que introduzimos as Normas de Bem-Estar dos Trabalhadores, em 2014, nossos esforços resultaram em melhorias significativas nas normas de acomodação, de saúde e de segurança, mecanismos de reclamação, provisões de saúde e reembolso de taxas de recrutamento ilegal de trabalhadores”.

DESRESPEITO - Trabalhadores migrantes nas obras de uma das oito arenas do Catar: denúncias de mortes e maus-tratos -
DESRESPEITO - Trabalhadores migrantes nas obras de uma das oito arenas do Catar: denúncias de mortes e maus-tratos – (Hassan Ammar/AP/Image Plus)

Pressionado, o Catar interrompeu um sistema de apadrinhamento profissional conhecido como kafala (de fiador) — ele confere às empresas a decisão de autorizar um imigrante a mudar de emprego ou de impedi-lo de deixar o país, postura criticada e que se aproxima do trabalho análogo à escravidão. Ressalve-se que 75% da população do país, de menos de 3 milhões de pessoas, é de cidadãos estrangeiros, especialmente indianos. “O Catar quis aproveitar a Copa para ampliar seu soft power diplomático, tentando se mostrar como um país democrático e moderno, nem tão autocrático quanto parece”, escreveu Paul Michael Brannagan, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, especializado no estudo de grandes eventos esportivos. O tiro pode ter saído pela culatra — embora o escrutínio global possa vir a forçar novas mudanças.

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FRESCOR - Abdul Ghani, o “Doutor Frio”: responsável pelo ar-condicionado, arma contra o calor, mesmo no inverno local -
FRESCOR - Abdul Ghani, o “Doutor Frio”: responsável pelo ar-condicionado, arma contra o calor, mesmo no inverno local – (Karim Jaafar/AFP)

Chama a atenção, por inaceitável, o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+, além da misoginia (as mulheres, embora tenham amplo acesso à universidade e algumas sejam ministras, não são autorizadas a viajar sozinhas). O sistema jurídico é baseado na sharia, o conjunto de leis islâmicas. A homossexualidade é proibida, punível com até três anos de prisão. Na semana passada, grupos ativistas protestaram em frente à sede da Fifa, em Zurique. Seleções como a da Inglaterra, liderada pelo artilheiro Harry Kane, anunciaram o uso de braçadeiras com as cores do arco-íris. Membros do Comitê Organizador foram obrigados a se explicar, mas em tom ambíguo. “Demonstrações públicas de afeto são desaprovadas”, disse Nasser Al Khater, o cartola-mor. “O Catar é um país modesto. Os homossexuais virão ao Catar como torcedores de um torneio de futebol. Podem fazer o que qualquer outro ser humano faria, mas do ponto de vista de demonstração de afeto público, somos conservadores.”

Nem seria preciso sublinhar a postura ruim das autoridades em relação à diversidade, mas Khalid Salman, “embaixador” do Catar na Copa deu a absurda deixa em um documentário para a TV alemã, divulgado há alguns dias. Para ele, “a homossexualidade é um dano mental”. Paira uma dúvida: como serão tratadas eventuais manifestações, dentro e fora das arenas, em nome da diversidade? A desfaçatez pare­ce ser a regra, por enquanto. Em abril, o major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari, presidente do Comitê Nacional de Contraterrorismo do Catar, declarou que bandeiras LGBTQIA+ não serão permitidas. “Se um torcedor levantar uma bandeira de arco-íris e eu tirá-la de sua mão, não seria porque eu quero”, disse. “Porque se eu não fizer isso, alguém poderá atacá-lo. Não posso garantir o bom comportamento de todos, e vou dizer ao torcedor: não é necessário levantar a bandeira neste local.”

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DEFESA LGBTQIA+ - Kane, da Inglaterra: braçadeira com as cores do arco-íris -
DEFESA LGBTQIA+ - Kane, da Inglaterra: braçadeira com as cores do arco-íris – (Jonathan Moscrop/Getty Images)

Diante de tantos percalços — e convém sempre reafirmar que uma Copa é muito mais do que futebol —, a Fifa piscou. Em uma carta enviada aos dirigentes das federações, o presidente da entidade, o italiano Gianni Infantino, e a secretária-geral, Fatma Samoura, alegam “estar cientes dos desafios de natureza política”, mas — há sempre um mas — imploram: “Por favor, não permita que o futebol seja arrastado para todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem. Na Fifa, tentamos respeitar todas as opiniões e crenças, sem entregar lições de moral para o resto do mundo”. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o apelo ser atendido, como se a Copa do Mundo fosse disputada em lugar nenhum, sem alma nem interações sociais.

Não se trata de jogar um balde de água fria na festa ou de azedar os gols — mas é sempre bom saber em que campo serão disputadas as partidas. A Copa passa, mas o Catar, as relações internacionais e o cotidiano das pessoas, não. Que o Mundial, depois de um mês, sirva também para novos olhares, novas políticas, no avesso da obtusidade conservadora de um tempo que precisa ficar para trás. Nesse aspecto, a decisão de Fifa de levar juízes e bandeirinhas mulheres a um país machista em torneio de homens deve ser louvada. É oxigênio muito bem-vindo. E que a vigilância com o Catar, como houve com a Berlim de 1936 e a Argentina de 1978, possa fazer do mundo um lugar melhor para viver — ou jogar bola.

Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816

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