Quem disse que era apenas futebol?
Documentário mostra como a revista PLACAR, lançada em 1970, ajudou a moldar a história do cotidiano brasileiro – e foi moldada por ele

Não é como contar o fim do filme, em postura desmancha-prazeres, nada de spoiler, então aí vai: é de rir e chorar de emoção os 2 minutos de Pelé ao término do documentário PLACAR – A Revista Militante, que será exibido em janeiro pela TV Cultura e já começa a ser cobiçado pelos canais de streaming. O ano é 2019. O rei, instado a gravar em vídeo uma frase a respeito do cinquentenário da mais longeva publicação de esportes do Brasil – “PLACAR, 50 anos de paixão pelo futebol” –, se atrapalha, erra as palavras. “Cinquenta anos de amor”, diz, para então olhar para a câmera e completar: “pus esse amor aí, valeu?”. Tenta-se uma, duas, três vezes, até que o slogan saia direito – e então sobem os créditos.
É o casamento ideal, do maior de todos, o mito que morreria em dezembro de 2022, com o periódico que reinventou o jornalismo esportivo e fez da bola um planeta de amores e dissabores, de louvação aos gols e defesas, a glória de títulos, mas de permanente vigília com o que sempre andou no breu das tocas – daí o “militante” do título. O filme tem a direção geral de Ricardo Corrêa, um dos mais celebrados repórteres fotográficos de PLACAR, que começou a carreira como office-boy, para usar a expressão em voga até muito recentemente. A direção é de Sérgio Xavier Filho, ex-diretor de redação no início dos anos 2000. A direção de conteúdo é de Alfredo Ogawa, outro nome de peso da trajetória jornalística de um canto da imprensa sem medo de cutucar as onças com vara curta. A assistência de direção e de fotografia é de Alexandre Battibugli, ainda hoje pelas bandas de lá. A reunião de colegas de trabalho e amigos faria supor o tom chapa-branca, mas não. A Revista Militante, celebração de um tempo dourado do jornalismo, com doses de intenso romantismo, consegue rir de si mesmo, dos exageros datados pelo tempo de pouca diversidade, da postura impávida de quem via a planície da torre de marfim.
O roteiro tem a clássica formatação de imagens de arquivos (os recortes de páginas, as capas, as fotografias de um acervo inigualável), costuradas com uma série de entrevistas afeitas a amarrar a narrativa. Um aviso: na condição de redator-chefe de PLACAR entre 2020 e 2022, no tempo da pandemia, sou um dos entrevistados – e por ter conhecido os bastidores da revista, desde criança, quando a colecionava, até ter o privilégio de tocá-la na companhia de extraordinários jornalistas, todos amantes de PLACAR, posso garantir: não se trata de louvação tola, olha só como se fez e se faz isso aqui. Não.
É uma pequena aula de história do Brasil, um bonito passeio pelo período de democratização, um mergulho nas malandragens que manchavam o esporte em tempo de ópio do povo. PLACAR, lançada dois meses antes da Copa do Mundo de 1970, no México, no auge da ditadura, nasceu atrelada a seu tempo. Agora publicada pela Editora Score e não mais pela Editora Abril, de onde saiu em 2022, a revista sabe só conseguir manter relevância se souber conversar com o cotidiano – dos craques e das craques, sem dúvida, mas também das mudanças que atravessam o esporte, com o surgimento das SAF, as Sociedades Anônimas de Futebol, e a proliferação das casas de apostas, as bets que tanto ruído provocam. O mérito do documentário é iluminar as primeiras pedras da estrada. Dito de outro modo: como PLACAR virou marca tão relevante?
Diretas Já e Democracia Corinthiana
A resposta: permanente coerência, e os depoimentos de seu mais simbólico diretor de redação, Juca Kfouri, são comprovação dessa postura. Pode-se assistir ao longa (1 hora e 40 minutos de duração) como quem passeia pelas transformações do país. No início, a resistência aos quartéis, com destaque para reportagens com João Saldanha, o treinador do Botafogo e da Seleção que nunca escondeu ser comunista de carteirinha. Destaca-se a campanha pelo “passe livre”, liderada pelo meia Afonsinho, barbudo de uma época em que usar barba era como um cartaz de passeata. Depois, no início dos anos 1980, deu-se a bandeira desfraldada a favor das Diretas Já e da Democracia Corinthiana, o movimento liderado por Sócrates e Casagrande – Casagrande, aliás, que atravessa as tomadas do documentário com um ponto de vista interessante e inédito, o do jogador que via a si mesmo e a seus colegas nas páginas impressas, sabendo, sim, ter participado de uma movimentação política e cultural.
Há espaço para os gênios da bola, como Pelé, claro, e Zico. Há terreno para os bastidores de uma das mais rumorosas reportagens de investigação e denúncia, a da máfia da loteria esportiva, de 1985. Há janela para um mea culpa sincero em torno da postura machista e misógina – coerente com os machistas e misóginos anos 1990 – com que tratava as mulheres que orbitavam o universo do futebol. Tudo somado, Placar – A Revista Militante é filme necessário. É jornalismo e história no avesso da velocidade efêmera das redes sociais de hoje, tempo em que o jornalismo anda perigosamente refém da lógica dos cliques a qualquer custo.
A produção, de edição precisa, como “a elegância sutil de Bobo”, para usar um trecho da conhecida canção de Caetano, faz pensar. Nas palavras do jornalista Carlos Maranhão, em um dos textos publicados na edição especial de PLACAR para celebrar os 50 anos, em 2020, ao descrever o ambiente da redação nos primórdios: “Ah, sim. A zona, as bagunças, as cantorias e o futebol com bolas feitas de laudas – que desapareceram junto com as máquinas de escrever e o telex – foram sumindo devagarzinho, sem que PLACAR perdesse o fundamental: a alma apaixonada que a trouxe até aqui”.

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