Por que o Brasil, que trata tão mal pessoas com deficiência, é potência mundial nos Jogos?
A receita do sucesso tem uma longa lista de ingredientes
É uma contradição evidente. No Índice de Inclusão Global (GDI), relatório anual publicado pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil apareceu em 2023 em constrangedora 60ª posição entre os países respeitosos — ou desrespeitosos, sublinhe-se — com as diferenças. No entanto, nas Paralimpíadas, brasileiros despontam sempre entre os oito primeiros colocados no rol das medalhas de ouro, prata e bronze. É assim desde 2012, em Londres (veja no quadro), e tudo indica que será essa a toada nos Jogos Paralímpicos de Paris, previstos para começar em 28 de agosto. Haverá a comoção habitual e merecida, retratos de vitórias de vida, registros de superação e persistência, ainda que não venham a ter a mesma ribalta da Olimpíada emoldurada pelo Rio Sena.
Mas, afinal de contas, como o Brasil consegue vencer fosso tão profundo e, das dificuldades de um país ferido a bala e em acidentes de trânsito, subir ao pódio? Não é movimento, insista-se, que desponte em grande escala entre a turma vencedora de Rebeca Andrade, Beatriz Souza, Ana Patrícia e Duda. “Quando se fala em bons resultados a nível mundial, é impossível não mencionar o Brasil”, disse a VEJA o velocista Petrúcio Ferreira, recordista mundial nos 100 metros e 200 metros rasos, que perdeu parte do braço esquerdo em uma máquina de moer capim, aos 2 anos de idade. “É resultado do trabalho de preparação voltado ao alto rendimento, que nos permite ter bom desempenho.”
A receita do sucesso tem uma longa lista de ingredientes. Um dos marcos fundamentais foi a criação da Lei Agnelo Piva, em 2001, que prevê a destinação de parte do dinheiro arrecadado pelas loterias federais ao esporte, tanto olímpico quanto paralímpico. Embora a divisão inicial tenha favorecido o esporte olímpico, o montante destinado à preparação de atletas com deficiência conseguiu impulsionar o desenvolvimento das modalidades, e isso graças a uma iniciativa em particular, de investimento muito bem feito: a construção do Centro de Treinamento Paralímpico do Brasil, em São Paulo. A obra foi oficializada em janeiro de 2013 e a inauguração ocorreu dois anos depois. É o maior legado esportivo dos Jogos Rio 2016 e uma das instalações mais completas de todo o mundo, em igualdade de condições com lugares de treinamento de países nórdicos. O espaço, um colosso em dimensão, equivalente a dez campos de futebol, virou ponto de encontro para atletas de dezessete modalidades esportivas, que, junto com seus treinadores, se hospedam em um hotel de 300 leitos enquanto se preparam para competir.
Um outro bom caminho foi a descentralização de estruturas de apoio em diversos estados, o que explica a representatividade das delegações. Há unidades de treinamento espalhadas pelo país, com o objetivo de preparar os atletas em seus locais de origem e angariar novas gerações paralímpicas. Incentivos governamentais, como Bolsa Atleta e Bolsa Pódio, também são distribuídos de forma equiparada entre os esportistas olímpicos e paralímpicos. “O Brasil tem consciência de como crescer, e a gente tem feito isso”, diz Carol Santiago, deficiente visual, campeã paralímpica de natação e recordista mundial dos 50 metros livre, que tem uma alteração congênita da retina. “O que era um grande sonho já está se concretizando em resultados reais.”
Mas o que talvez diferencie o Brasil é algo um tantinho impalpável, difícil de ser calculado na ponta do lápis — e que pode explicar a excelente performance. Em um canto do mundo em que as oportunidades para pessoas com deficiência são limitadas, o esporte é uma das poucas formas de inclusão e reconhecimento. Para muitos, o movimento paralímpico não é apenas uma carreira, sinônimo de glória, mas uma chance de porta aberta para a realidade apartada dos atropelos do cotidiano. “Para os atletas com deficiência, a primeira questão é a resiliência”, diz Mizael Conrado, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro. “Principalmente quando se trata de um país em que você já nasce com a obrigação de ser um super-herói. Depois, é preciso muito incentivo, inclusive governamental, para atrair essas pessoas.” Tem funcionado, e funcionará novamente nas arenas parisienses. Mas convém depois fazer a rota inversa e usar as láureas dos atletas como alavanca para o cotidiano de cidadãos à margem, ingloriamente.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907