Por que as mulheres são mais propensas a contusões nos joelhos?
A incômoda pergunta que intriga os especialistas em medicina esportiva
A cena foi dramática, doída como o pranto das brasileiras ao serem eliminadas logo na primeira fase da Copa do Mundo. Aos 34 minutos do segundo tempo, a Inglaterra vencia a Dinamarca por um 1 a 0. Depois de pisar em falso, a meio-campista Keira Walsh — destaque da seleção inglesa, que trocou o Manchester City pelo Barcelona por 500 000 dólares, valor recorde — caiu no gramado com as mãos no joelho direito. Foi atendida em campo, mas o choro indicava que o problema era sério, embora exames posteriores não tenham sugerido ligamentos rompidos. Walsh não participou da partida seguinte, contra a China, e é incerteza para as próximas etapas. Ela puxa uma fila incômoda, a de jogadoras afastadas dos gramados em decorrência de contusões nos joelhos. Trata-se de uma epidemia. Leah Williamson e Beth Mead, suas colegas da The Lionesses, não se recuperaram a tempo após sofrer o mesmo tipo de ferimento. O caso mais notável é o da espanhola Alexia Putellas, duas vezes Bola de Ouro, que só foi convocada para o torneio da Austrália e Nova Zelândia na última hora, fragilizada. A holandesa Vivianne Miedema, maior artilheira do seu time, também ficou em casa, assim como a alemã Giulia Gwinn e a brasileira Catarina Macario, que joga pelos EUA.
Em comum, todas essas atletas padeceram do rompimento do ligamento cruzado anterior (LCA) — embora Walsh tenha sido poupada do grave diagnóstico —, estrutura que confere estabilidade nas rotações e impede que a tíbia se desloque para frente do fêmur (veja a ilustração). É um dano comum no futebol, mas que surpreende pela incidência entre as mulheres. “Devido a muitas mudanças de direção, o esporte predispõe a entorses”, diz o ortopedista Ricardo Galotti, membro da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte e do Exercício. Gramado irregular e falta de condicionamento apropriado podem ampliar os riscos. Até existem medidas para minimizar o perigo, como o fortalecimento da musculatura da coxa e do quadril, e o chamado treino proprioceptivo, que ajuda a conferir maior equilíbrio durante as movimentações. A ideia é resguardar o ligamento, que, uma vez rompido, só permite à jogadora retomar a carreira após uma cirurgia.
Mesmo assim, as ameaças existem — ainda mais em se tratando de profissionais. Faltam, no entanto, estudos atrelados à anatomia feminina que ajudem a explicar os motivos que as tornam mais suscetíveis a esse tipo de lesão. A ciência já entende que as atletas têm de três a seis vezes mais chances de serem vítimas desse quadro em relação aos homens que praticam os mesmos esportes. A título de comparação, cinco das vinte indicadas à Bola de Ouro feminina em 2022 haviam rompido o ligamento. Em contrapartida, nenhum dos trinta homens candidatos ao prêmio sofreu a lesão.
Existem diversas pesquisas que apontam a correlação entre as práticas esportivas com patologias do joelho, mas raramente aspectos relacionados ao corpo das mulheres são levados em conta. Acredita-se haver influência das variações de estrogênio, o hormônio feminino, que podem impactar o desempenho físico e aumentar a propensão a lesões nos períodos pré-ovulatórios e ovulatórios. O Chelsea, na Inglaterra, monitorou os ciclos menstruais das suas jogadoras em uma tentativa de reduzir os danos. Apenas duas tiveram problemas no ligamento desde 2018. O resultado indica o potencial da prevenção.
Saber que as mulheres têm maior probabilidade de machucar o joelho é indício de que algo precisa ser feito. A profissionalização das categorias de base, capaz de preparar as atletas para as competições futuras, torna-se ainda mais decisiva. Nas ligas masculinas, há muito investimento em capacitação de jovens jogadores, mas a situação é diferente no futebol feminino. Pensar em equipamentos apropriados, como chuteiras, é outro fator determinante. Uma pesquisa feita pela Associação de Clubes Europeus apontou que 82% das jogadoras sentem desconforto com os calçados atuais. A visibilidade que a Copa do Mundo confere à modalidade pode e deve iluminar a saúde das atletas. É o que se espera, por igualdade de gênero.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853