Paris se prepara para oferecer os Jogos mais belos e verdes da história
Às vésperas da Olimpíada, a cidade se põe sob os holofotes globais, um protagonismo que sabe muito bem saborear
O monumento mais antigo de Paris, cidade erguida sobre várias camadas da história, reina no centro da Place de la Concorde, sua maior praça. É ali que, no século XIX, fincaram o obelisco de Luxor, um mimo de 3 300 anos de idade presenteado a uma França em ascensão, que fazia par com outro até hoje pousado na entrada do templo egípcio. Ele convive com as recém-chegadas instalações olímpicas que, sempre cercadas por curiosos, abrigarão modalidades que ingressaram nos Jogos para rejuvenescê-los — skate, basquete 3×3, BMX freestyle (categoria radical do ciclismo) e breaking, estreante nesta 33ª edição da Olimpíada na Era Moderna, a terceira em solo parisiense, que vai de 26 de julho a 11 de agosto. O novo e o velho, lado a lado, exprimem o espírito destes tempos num centro urbano nervoso, que já experimentou aclives e declives, mas nunca deixou de ser um espelho para a humanidade do joie de vivre, um jeito de viver em que saber apreciar uma refeição produzida com todo esmero é essencial à existência.
Agora, Paris se põe, mais uma vez, no centro dos holofotes globais e quer aproveitar ao máximo. Além dos duelos travados nas pistas, quadras e tatames, com um rol de 45 modalidades disputadas por 10 500 atletas de mais de 200 países — um espetáculo em que homens e mulheres estarão pela primeira vez em igual proporção testando os limites humanos —, há outras batalhas em paralelo na Cidade Luz. A ambição local não é nada modesta, como, aliás, nunca o foi. “Queremos exibir toda a beleza de Paris e fazer dela a mais verde de todas as cidades”, disse a VEJA a prefeita Anne Hidalgo, 65 anos, que tem sido vista por todo canto. No domingo 14 de julho, o grande feriado nacional que acendeu o patriotismo local, era clicada cedo da manhã até tarde da noite às voltas com a tocha olímpica. Na quarta-feira 17, finalmente cumpriu a promessa de saltar nas águas do Rio Sena.
O circuito da chama seguiu o estratégico roteiro de exibir ao mundo os famosos cartões-postais, que serão cenário de competições como o vôlei de praia, sediado numa arena aos pés da Torre Eiffel; o hipismo, cuja briga por medalhas se dará sob a luxuosa moldura do Palácio de Versalhes; e a esgrima, abrigada no belo Grand Palais, próximo da Avenida Champs-Élysées, parcialmente fechada para carros para receber os 15 milhões de turistas que já começam a chegar. Muitos percorrerão um trajeto fora da rota usual, rumo a Saint-Denis, base da natação e do atletismo. Justamente aí reside um possível legado: romper a histórica barreira que separa o centro e suas ruelas encantadoras do vasto e empobrecido subúrbio.
Quando o barão francês Pierre de Coubertin apareceu no século XIX com o plano de reembalar as Olimpíadas da Grécia Antiga, lançava uma visão idealizada de que as nações conviveriam em perfeita harmonia naqueles dias impermeáveis a hostilidades. Um projeto utópico, como os Jogos de Berlim, de 1936, em plena ascensão nazista, ou os promovidos na Guerra Fria, marcados por boicotes, demonstraram. A atual edição ocorre num planeta chacoalhado por guerras — a de Israel e Gaza e a de Rússia e Ucrânia já reverberam em ataques entre comitês — e num ambiente de turbulências na França. A três semanas do evento, o presidente Emmanuel Macron decidiu antecipar as eleições legislativas, freando a extrema direita, mas deixando tensão de alta voltagem no ar: ainda não se sabe como será o rearranjo de forças — e a população, politizada que é e de nariz torcido para a Olimpíada (ruas e estações de metrô fechadas e a muvuca não ajudam), tem outras prioridades. “Primeiro, elegi meus candidatos, aí dei uma passadinha para ver os anéis olímpicos na Torre Eiffel e daqui a pouco vou embora de férias”, diz a aposentada Iolande Goujard, 71 anos.
A aposta dos organizadores é que as resistências se dissipem na hora da festa. “É comum os parisienses baixarem a guarda quando veem que a coisa é boa”, afirma a prefeita Hidalgo. A abertura da Olimpíada está prevista para ter como palco o Sena, artéria em torno da qual a cidade emergiu e se enfileiram maravilhas como a Notre-Dame, a catedral gótica que, engolfada por um incêndio em 2019, não ficou pronta a tempo, exceto pela linda fachada, pano de fundo para muitas selfies nestes dias. Nunca a largada olímpica se deu fora de um estádio, ineditismo que traz justificada preocupação com a segurança. Os riscos estão sendo permanentemente monitorados, e o próprio Macron já avisou: “Temos planos A, B e C para a abertura”. A VEJA, o vice-prefeito Pierre Rabadan garantiu: “Com tanto planejamento, não haverá lugar mais seguro no mundo do que Paris”.
Há um século interditado para banho, o Sena é peça central no pacote que ambiciona projetar Paris como uma vitrine da sustentabilidade. Além de 420 quilômetros de vias para bicicletas (nas ruas, são elas que mandam), 1,4 bilhão de euros foram reservados para sanear suas águas, que melhoraram consideravelmente, mas andaram mais sujas e revoltas do que o desejado para receber os atletas do triatlo e da maratona aquática. Choveu acima do esperado, e o novo tanque com capacidade para armazenar o equivalente a trinta piscinas olímpicas não deu conta. A primeira a tomar coragem de mergulhar no rio para exibir sua balneabilidade foi Amélie Oudéa-Castéra, a ministra dos Esportes. “Isso aí está limpo?”, perguntava Louis Moreau, 22 anos, mirando o Sena. Incomodada, Hidalgo resolveu, enfim, dar suas braçadas por lá. De todo modo, a concentração de bactérias será testada diariamente.
Não é a primeira vez que Paris se vê no centro dos acontecimentos, mas havia tempo que não exercia o protagonismo que tão bem sabe saborear. A corte francesa do século XIV já era referência de produção literária, comportamento e moda — esplendor que, depois de um doloroso hiato sobre o tripé peste-fome-guerra, engalfinhando-se com os ingleses por 100 anos, seria amplificado a alturas jamais exploradas no palácio de Luís XIV. O monarca comandava a perdulária rotina em Versalhes no Gran Siècle, o glorioso século XVII, em que, quando se pronunciava a palavra rei na Europa, todo mundo sabia se tratar desse Luís. O mundo estava atento aos confits e folheados que serviam à mesa e ao que se vestia naqueles salões — que valem muito a visita, entre uma e outra prova de hipismo nos jardins.
Dois soberanos depois, com a pobreza grassando do lado de fora e o debate político e filosófico fervilhando, o caldeirão chegou a um ponto de ebulição tal que o reino de Luís XVI e Maria Antonieta ruiu e não sobrou tijolo sobre tijolo da Bastilha, prisão-símbolo da monarquia derrubada pelos revoltosos. Era 1789, e a Revolução Francesa, mesmo com suas contradições, trouxe a noção de educação como mola propulsora e agitou a bandeira da liberdade-igualdade-fraternidade, que transbordou pelas fronteiras. Floresceu assim uma animada vida burguesa, com a ascensão de instituições como o restaurante, tocados por chefs que ficaram desempregados quando os patrões perderam a cabeça na guilhotina instalada na Place de la Concorde, a mesma do skate e do breaking. A gastronomia segue até os dias de hoje praticada quase como religião. “A cozinha francesa está viva, vibrante, e a Olimpíada é uma chance para mostrá-la ao mundo”, disse a VEJA Alain Ducasse, dono da maior coleção de estrelas no Guia Michelin, 21 no total.
Mesmo com a derrocada de Napoleão Bonaparte e o fortalecimento da Inglaterra, o século XIX teve nos franceses grandes desencadeadores de mudanças que transformariam a paisagem do mundo ocidental. “As pessoas iam a Paris para ver de perto a síntese da modernidade e para onde o futuro estava caminhando”, resume o historiador britânico Colin Jones, autor de Paris, Biografia de uma Cidade. O próprio conceito de urbanismo se consolidou nas mãos do controverso Barão Haussmann, que derrubou predinhos e abriu amplas avenidas, onde perambulavam os flâneurs, atentos a tudo em volta sem consultar o relógio. “Para o flâneur perfeito, é um prazer imenso morar no coração da multidão, em meio ao fluxo da maré humana, fugidia e infinita”, escreveu o poeta Charles Baudelaire, traduzindo o espírito da época (leia a coluna de Lucilia Diniz na pág. 77). Como crítico, ele deu empurrão fundamental ao impressionismo, movimento a princípio desacreditado, mas que viria a abrir uma decisiva janela para a arte moderna. Tudo em Paris.
A primeira Olimpíada na cidade, em 1900, foi engolida pela Exposição Universal — o torneio dividia a atenção com um monte de estandes repletos de inovações e foi diluído em quatro meses, com a natação disputada em um Sena imundo. Mas foi aí que brotaram o metrô, o Grand e o Petit Palais, além da ornada Ponte Alexandre III, agora ponto de partida para o triatlo, a maratona aquática e o ciclismo de estrada. Nos Jogos de 1924, enquanto Paris ainda sentia o baque da Primeira Guerra, pôs de pé o conceito de Vila Olímpica e se deixava embalar pelos ventos dos Loucos Anos 20, período em que uma turma de americanos cruzou o Atlântico motivada pelos libertários ares franceses (leia na pág. 64). Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e Henry Miller esbarravam nos cafés com Picasso, Matisse e tantos outros, em efervescentes encontros que fizeram frutificar grandes ideias e vanguardas. “Todo mundo queria estar em Paris para se beneficiar desse ecossistema”, diz Felipe Martinez, doutor em história da arte.
Mais tarde, a Champs-Élysées, onde os visitantes comem (caro) e fazem fila para entrar nas megalojas, testemunhou a traumática ocupação de Paris pelos nazistas, em 1940, e, quatro anos depois, a tão celebrada liberação das garras alemãs. A França saiu do conflito cheia de fissuras, já ultrapassada economicamente por Londres e vendo o eixo de poder e influência mover-se para Nova York. Ainda assim, não perdeu o vigor para inovar no pensamento. “Mesmo no declínio, os franceses sempre demonstraram capacidade para se reinventar, tendo produzido toda a filosofia do século XX”, diz Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil na França. Ameaças de greve de servidores públicos, dor de cabeça no transporte e incertezas políticas pairam sobre os Jogos que se avizinham. Mas aí vale lembrar o lema da Cidade Luz: “Sacudida pelas ondas, não afunda”. A tirar pela maratona pré-olímpica, o que Paris quer mesmo é voar alto.
Leia, a partir de quinta-feira 25, no blog Paris é uma festa, tudo o que acontece fora das arenas olímpicas.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902