Os 130 jogadores que atuam na Copa por países onde não nasceram
O movimento ecoa as desigualdades do mundo
Toda Copa do Mundo é também uma aula de história e sociologia. Por meio dela, em torno dos jogadores, dos treinadores e das torcidas que a movimentam, é possível traçar as contradições de um planeta desigual, o fosso entre os ricos e os pobres, o abismo entre as nações democráticas e as autoritárias — as diferenças, sublinhe-se, que alimentam as correntes migratórias. Não houve, no Catar, retrato mais claro desse caldo de cultura do que o gol solitário feito pelo atacante suíço Embolo contra Camarões, na primeira rodada, na vitória por 1 a 0. Aos 25 anos, nascido em Yaoundé, a capital camaronense, ele é cidadão da Suíça desde 2014. Migrou com a mãe, separada do pai, ainda criança. Buscavam vida mais decente.
Ao balançar a rede, ergueu os braços para deixar claro que não estava comemorando e levou as mãos à boca. Foi comovente. “É preciso se acostumar com a ideia de que as nacionalidades estão cada vez mais fluidas, com os cidadãos dividindo sua identidade entre dois países, até mais”, disse a VEJA Alessio Norrito, pesquisador da Universidade de Loughborough, da Inglaterra, especialista na geopolítica da bola. “A Suíça é o país de Embolo, mas Camarões também é. Ambos fazem parte de sua errática trajetória pessoal.”
Há, na Copa do Catar, 130 jogadores que disputam o torneio por seleções de países onde não nasceram — o equivalente a 15% do total de inscritos. É número que tende a crescer nos próximos Mundiais, de mãos dadas com a abertura de fronteiras promovida pelo esporte. Por curiosidade: nunca, em um Mundial, a seleção brasileira teve jogador nascido fora do país. Mas o meia Andreas Pereira, ex-Flamengo, criado na Bélgica, com dupla nacionalidade, vestiu uma única vez a amarelinha. Um estudo do Centro Internacional de Estudos do Esporte (Cies) mostrou que 25% dos jogadores profissionais das principais ligas europeias e das Américas — pelo menos 14 000 esportistas — são expatriados, um crescimento de 16% em relação a levantamento semelhante feito em 2017.
Alguns atletas nasceram em um canto e se mudaram para outro ainda na meninice, como é o caso do próprio Embolo e de Raheem Sterling, o inglês que passou a infância na Jamaica. Outros, como o suíço Shaqiri, de origem no Kosovo, decidiram vestir a camisa da nação que os abraçou. Tim Weah, dos Estados Unidos, nascido em Nova York, é americano — e não poderia estar na lista de “estrangeiros”. Mas sua vida é curiosa demais para ser esquecida. Ele é filho de George Weah, que já foi o melhor do mundo e hoje é presidente da Libéria. Parte dessa turma apenas recentemente virou a casaca, de modo a reforçar equipes mais fracas. Mas nada se compara à fascinante aventura dos irmãos Williams. Nico joga pela Espanha. Iñaki, por Gana. Eles são filhos de pai ganês e mãe liberiana, mas nasceram em solo espanhol — por isso podiam atuar no Athletic, onde iniciaram a carreira, clube que só admite a presença de jogadores nascidos na região do País Basco. Iñaki chegou até a atuar com a camisa da seleção europeia, em amistoso diante da Bósnia, em 2016, mas, como nunca realizou uma partida oficial, estava apto e aceitou servir Gana no Mundial.
Uma semana antes de desembarcarem em Doha, eles foram às redes sociais para postar uma foto ao lado da taça, com um recado carinhoso aos pais, em espanhol: “Pelos velhos. Catar, aí vamos nós”. Lembre-se que Kevin-Prince Boateng, atacante de Gana, e Jérôme Boateng, zagueiro da Alemanha, disputaram as Copas de 2010 e 2014. A partir de agora, contudo, narrativas como a dos irmãos apartados deixarão de ser insólitas, curiosidades esparsas, porque o futebol ecoa a civilização. “A globalização, associada ao aumento da migração por motivos econômicos, mudou também o futebol”, diz o pesquisador Norrito. “Tornou o jogo mais competitivo, de maior alcance internacional e, portanto, mais lucrativo. Mas lembro que a difusão do futebol pelo mundo é desigual, e não podemos esquecê-la.” Não há realmente como esquecer dessa constatação, dada a discrepância das seleções na Copa, apesar das surpresas. Mas valerá sempre recordar o gesto digno de Embolo, símbolo de um tempo novo e irrefreável.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818