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Os 130 jogadores que atuam na Copa por países onde não nasceram

O movimento ecoa as desigualdades do mundo

Por Fábio Altman, de Doha
Atualizado em 4 jun 2024, 11h09 - Publicado em 2 dez 2022, 06h00

Toda Copa do Mundo é também uma aula de história e sociologia. Por meio dela, em torno dos jogadores, dos treinadores e das torcidas que a movimentam, é possível traçar as contradições de um planeta desigual, o fosso entre os ricos e os pobres, o abismo entre as nações democráticas e as autoritárias — as diferenças, sublinhe-se, que alimentam as correntes migratórias. Não houve, no Catar, retrato mais claro desse caldo de cultura do que o gol solitário feito pelo atacante suíço Embolo contra Camarões, na primeira rodada, na vitória por 1 a 0. Aos 25 anos, nascido em Yaoun­dé, a capital camaronense, ele é cidadão da Suíça desde 2014. Migrou com a mãe, separada do pai, ainda criança. Buscavam vida mais decente.

Ao balançar a rede, ergueu os braços para deixar claro que não estava comemorando e levou as mãos à boca. Foi comovente. “É preciso se acostumar com a ideia de que as nacionalidades estão cada vez mais fluidas, com os cidadãos dividindo sua identidade entre dois países, até mais”, disse a VEJA Alessio Norrito, pesquisador da Universidade de Loughborough, da Inglaterra, especialista na geopolítica da bola. “A Suíça é o país de Embolo, mas Camarões também é. Ambos fazem parte de sua errática trajetória pessoal.”

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SEPARADOS NO NASCIMENTO - Os irmãos Williams, com a taça, em postagem na internet, antes da estreia: Nico joga pela Espanha; Iñaki, por Gana – (@williaaaams11/Instagram)

Há, na Copa do Catar, 130 jogadores que disputam o torneio por seleções de países onde não nasceram — o equivalente a 15% do total de inscritos. É número que tende a crescer nos próximos Mundiais, de mãos dadas com a abertura de fronteiras promovida pelo esporte. Por curiosidade: nunca, em um Mundial, a seleção brasileira teve jogador nascido fora do país. Mas o meia Andreas Pereira, ex-Flamengo, criado na Bélgica, com dupla nacionalidade, vestiu uma única vez a amarelinha. Um estudo do Centro Internacional de Estudos do Esporte (Cies) mostrou que 25% dos jogadores profissionais das principais ligas europeias e das Américas — pelo menos 14 000 esportistas — são expatriados, um crescimento de 16% em relação a levantamento semelhante feito em 2017.

Alguns atletas nasceram em um canto e se mudaram para outro ainda na meninice, como é o caso do próprio Embolo e de Raheem Sterling, o inglês que passou a infância na Jamaica. Outros, como o suíço Shaqiri, de origem no Kosovo, decidiram vestir a camisa da nação que os abraçou. Tim Weah, dos Estados Unidos, nascido em Nova York, é americano — e não poderia estar na lista de “estrangeiros”. Mas sua vida é curiosa demais para ser esquecida. Ele é filho de George Weah, que já foi o melhor do mundo e hoje é presidente da Libéria. Parte dessa turma apenas recentemente virou a casaca, de modo a reforçar equipes mais fracas. Mas nada se compara à fascinante aventura dos irmãos Williams. Nico joga pela Espanha. Iñaki, por Gana. Eles são filhos de pai ganês e mãe liberiana, mas nasceram em solo espanhol — por isso podiam atuar no Athletic, onde iniciaram a carreira, clube que só admite a presença de jogadores nascidos na região do País Basco. Iñaki chegou até a atuar com a camisa da seleção europeia, em amistoso diante da Bósnia, em 2016, mas, como nunca realizou uma partida oficial, estava apto e aceitou servir Gana no Mundial.

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GLOBALIZAÇÃO - Tim, dos EUA: americano, ele é filho do atual presidente da Libéria, George Weah, que já foi o melhor do mundo -
GLOBALIZAÇÃO - Tim, dos EUA: americano, ele é filho do atual presidente da Libéria, George Weah, que já foi o melhor do mundo – (Jewel Samad/AFP)

Uma semana antes de desembarcarem em Doha, eles foram às redes sociais para postar uma foto ao lado da taça, com um recado carinhoso aos pais, em espanhol: “Pelos velhos. Catar, aí vamos nós”. Lembre-se que Kevin-­Prince Boateng, atacante de Gana, e Jérôme Boateng, zagueiro da Alemanha, disputaram as Copas de 2010 e 2014. A partir de agora, contudo, narrativas como a dos irmãos apartados deixarão de ser insólitas, curiosidades esparsas, porque o futebol ecoa a civilização. “A globalização, associada ao aumento da migração por motivos econômicos, mudou também o futebol”, diz o pesquisador Norrito. “Tornou o jogo mais competitivo, de maior alcance internacional e, portanto, mais lucrativo. Mas lembro que a difusão do futebol pelo mundo é desigual, e não podemos esquecê-la.” Não há realmente como esquecer dessa constatação, dada a discrepância das seleções na Copa, apesar das surpresas. Mas valerá sempre recordar o gesto digno de Embolo, símbolo de um tempo novo e irrefreável.

Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818

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