Messi e Mbappé: o último tango em Paris
A final da Copa oporá a maravilhosa habilidade do veterano argentino à juventude incontida do espetacular francês. O vencedor: o futebol
Por alguns segundos, o tempo de uma eternidade, a torcida alviceleste nas arquibancadas do Estádio Lusail pareceu interromper o canto mais ouvido no deserto do Catar nos últimos trinta dias — “En Argentina nací, tierra de Diego y Lionel, de los pibes de Malvinas que jamás olvidaré” — para acompanhar um instante aparentemente banal, mas imenso, da semifinal contra a Croácia. Era um escanteio para os argentinos. O meia Rodrigo de Paul pegou a bola e lentamente estendeu o braço para entregá-la a Messi, que se aproximava ainda mais vagarosamente, quase displicente. Foi como se De Paul dissesse: “É tua”. Sim, é dele. A Copa de 2022 foi sequestrada pelo gênio canhoto de 35 anos, moldado pelo passar dos anos, em seu quinto Mundial — um craque que soube trocar a agilidade pela inteligência, o esforço máximo pelo mínimo possível, a passada larga pelo caminhar miúdo, quase tímido.
Por alguns minutos, os marroquinos que fizeram do Estádio Al Bayt, em Al Khor, uma tenda árabe-muçulmana — a cercar os poucos franceses ilhados numa Gália como a de Asterix — silenciaram. A França acabara de fazer o primeiro dos dois gols contra o Marrocos, logo aos sete minutos, com Theo Hernández, depois de uma bola sobrada de um chute de esquerda disparado por Kylian Mbappé. Na pirâmide da comemoração, o camisa 10 francês estirou os olhos, à procura de Antoine Griezmann, que iniciara a jogada, como se dissesse: “Vem pra cá”. Mbappé, que na Copa de 2018 era um jovem coadjuvante de 19 anos, agora em 2022 virou o dono do time, de arrogância juvenil insuperável. Um jogador espetacular para quem a velocidade associada à força nos cantos do campo é sinônimo de oxigênio, cuja oscilação de corpo, vai, não vai, como fazia Garrincha, é capaz de pôr os adversários humilhados no gramado.
Messi e Mbappé farão da final de domingo 18 um evento do esporte capaz de sobreviver para sempre na memória coletiva. Não poderia haver uma decisão mais interessante e repleta de significados. As duas seleções, a Argentina e a França, buscam o tricampeonato mundial, o que já seria extraordinário. O futebol é coletivo, e daí sua mágica, mas a força magnética das duas estrelas autoriza um pouco de egoísmo. Messi, a caminho da aposentadoria, coroaria com a taça uma carreira inigualável de 1 002 partidas e 791 gols, antes do derradeiro jogo no Catar, já perto de pendurar as chuteiras, mas de presente indizível e passado glorioso. Mbappé, nessa linha do tempo, é o presente inquestionável de um futuro promissor. O encontro da dupla tem a beleza e a poesia da passagem de gerações.
No Catar, Messi empilhou recordes. Contra a Croácia, fez seu jogo de número 25 em Mundiais — igualando a marca do alemão Lothar Matthäus. Com 26, será o líder isolado. Ele tem onze gols marcados, cinco dos quais agora, e deixou para trás o centroavante Gabriel Batistuta entre os artilheiros da Argentina em Copa, autor de dez tentos. Mbappé também busca quebrar tudo, e sua régua de comparação vai ao céu: Pelé. O brasileiro foi o único com menos de 20 anos a ser decisivo em um torneio vitorioso, o de 1958, e manter o título na edição seguinte — ainda que, em 1962, tenha se contundido na segunda partida, dando lugar ao possesso Amarildo. Mbappé pode repetir a façanha, com sobras. O francês fez treze partidas de Copa até os 23 anos, sua idade atual. Marcou nove gols. Pelé, até os 23, fez seis partidas e sete gols.
Messi desfilou diante dos hinchas, e sabe-se lá de onde saíram tantos, em sua versão à la Diego Maradona — os argentinos adoraram quando ele disse nervoso “¿Qué mirás bobo? Andá p’allá” (“Está olhando o que, bobo? Vai para lá”) ao centroavante holandês que o encarava na entrada do vestiário, apenas para pedir a camisa do craque. A casca maradoniana do garoto que saiu de Rosário aos 13 anos para Barcelona, e sempre pareceu mais catalão, foi um modo de anunciar com estrondo que a hora tão sonhada, a de chegar ao patamar do El Diez, morto há dois anos, está chegando — e na mercurial Argentina essa condição é muita coisa.
Se for campeão do mundo, mas é preciso que seja, Messi entrará em um rol seletíssimo, acima do qual só aparecerá Pelé. Mbappé, bicampeão, ficará gigante. Instado a comentar a Copa realizada por Messi, um outro Lionel, o treinador Scaloni, não tem dúvida de pô-lo no papel de o maior da história. “É emocionante vê-lo jogar. Cada vez gera algo diferente aos companheiros, ao povo, não somente aos argentinos. É uma sorte que ele esteja no nosso lado”, disse. O técnico francês Didier Deschamps, provocado a explicar por que decidira entrar com reservas na derrota contra a Tunísia, na fase de grupos, levando ao banco até Le Dix, ironizou, a seu jeito aparvalhado: “Mbappé não tem ego”.
Qualquer que seja o resultado do Lusail, na primeira Copa do Oriente Médio, na qual o Marrocos serviu de ímã para o nacionalismo árabe do Islã, o mundo conhecerá um novo rei do futebol. Em janeiro Messi e Mbappé se reencontrarão nos vestiários do PSG — diante do olhar sem graça de Neymar, que não chegou lá.
“Parece um pesadelo”
Por trás do choro incontido no estádio Education City, depois da eliminação contra a Croácia, pelas quartas de final, Neymar se questionava, como 214 milhões de brasileiros: por que havia sete jogadores no ataque faltando quatro minutos e com o placar favorável? O contra-ataque croata, que levou a decisão para as penalidades, é uma daquelas feridas de nosso cotidiano da bola que levam tempo para cicatrizar (aliás, de quem mesmo foi a culpa do gol do uruguaio Ghiggia em 1950?).
A seleção chegou ao Catar como favorita. Ainda que o desempenho não tenha sido brilhante, longe disso, a defesa firme e os gols plásticos, como o voleio de Richarlison na estreia, permitiram alguma esperança. Uma avalanche de erros, contudo, sobretudo do técnico Tite, levou o escrete a uma saída embaraçosa, com requintes de crueldade — o único chute croata em 120 minutos ainda desviou em Marquinhos antes de entrar. Foi a quarta eliminação nas quartas desde o penta em 2002, todas para europeus.
Atordoado, Neymar, que pouco antes do baque marcara um golaço no primeiro tempo da prorrogação, igualando o recorde de Pelé (77 gols pela seleção), não garantiu que voltará a vestir a amarelinha. “Preciso pensar, parece um pesadelo”, disse. Justiça seja feita: ele jogou bem, deixou imagem melhor do que na Copa da Rússia, no tempo do cai-cai. Mas foi insuficiente. Em 2026, Neymar terá 34 anos e o time igualará seu maior jejum: 24 anos sem a taça.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820