Último mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

O novo capítulo na briga de um brasileiro por uma inovação no futebol

Heine Allemagne criou o spray para controlar a distância da barreira - e se envolveu em um vaivém jurídico interminável

Por Diego Alejandro
Atualizado em 4 jun 2024, 09h51 - Publicado em 24 set 2023, 08h00

Não foi exatamente como o eureca de Arquimedes (287 a.C.-212 a.C.), ao notar que o volume de água da banheira subia na medida em que ele descia com seu corpanzil, mas houve espanto de sucesso. Diz a lenda — e as lendas fazem bem às invenções — que o publicitário e designer mineiro Heine Allemagne via pela TV, em 1999, uma partida de futebol entre Brasil e Argentina quando Galvão Bueno, ao perceber os jogadores perfilados avançando na direção da bola, exclamou: “Quero ver o cidadão que vai manter a barreira no lugar!”. E, então, Allemagne teve uma sacada: foi ao banheiro, ali onde poderia estar Arquimedes, e traçou uma linha branca com o creme de barbear. Nascia, sem pompa — muito antes do VAR —, uma ideia que chacoalharia o esporte mais popular do mundo.

A marca branca no gramado, que passaria a ser utilizada a partir de 2000 em um torneio de Minas Gerais, evitaria a esperteza dos atletas nas faltas, mantendo-os na distância regulamentar de 9,15 metros da bola. A CBF adotou a novidade oficialmente a partir de 2002, ela depois alcançou os jogos da Libertadores da América, em 2009, e, enfim, a Copa do Mundo, em 2014. Antes do uso da ferramenta, a média de tempo gasto em uma cobrança era de um minuto a um minuto e cinquenta segundos. Agora, é de quarenta segundos a um minuto por falta cobrada. E adeus aos passinhos à frente…

CRIATIVIDADE - O designer mineiro Heine Allemagne, pai da criação: Davi contra Golias
CRIATIVIDADE - O designer mineiro Heine Allemagne, pai da criação: Davi contra Golias (./Arquivo pessoal)

Esse é o roteiro bonito da história, a aventura de uma criação simples e engenhosa. Há por trás dele, contudo, uma trajetória que envolve a briga pela ideia, ganância de poderosos cartolas e vaivém jurídico interminável — que agora, tal qual a serpentina que dá uma voltinha a mais só para nos surpreender, ganhou capítulo que autoriza alguma reviravolta. A patente, registrada no início do século, foi concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) em 2010. Não demorou para que a entidade máxima do futebol se interessasse pela bisnaguinha. Allemagne foi convidado a apresentações e workshops, treinou os árbitros, era querido e celebrado. A Fifa prometeu adquirir a patente, lavrada em 44 países, pela qual pagaria 40 milhões de dólares. Em 2014, porém, antes da Copa no Brasil, a oferta caiu a 500 000 dólares. “Foi um valor irrisório e humilhante”, disse Allemagne a VEJA. Durante o torneio, a Fifa chegou a encobrir o rótulo das latas de spray de modo a esconder a marca Spuni, do mineiro. As negociações foram encerradas, em litígio, e os dirigentes internacionais não se incomodaram em apelar para marcas que imitavam o modelo original.

A briga foi parar nas cortes. Em 2021, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou a Fifa. O desembargador Francisco de Assis Pessanha Filho apontou “flagrante má-fé negocial, violando o nome da empresa autora e quedando-se inerte na concretização do negócio jurídico”. Allemagne celebrou o feito — “o Golias do futebol perdeu para um brasileiro”, disse. Contudo, deu-se o contra-ataque, ainda sem decisão final, mas suficiente para apartar Allemagne de sua engenhosa traquitana. O Inpi, que desde o início dera aval ao processo e que em três momentos celebrou a qualidade do trabalho, voltou atrás, alegando “supostas irregularidades técnicas na descrição da patente do spray”.

Continua após a publicidade
MUDANÇA DE IDEIA - O parecer da perita Wanise Borges Gouvea Barroso: inexistem motivos para cancelar o registro da espuma
MUDANÇA DE IDEIA - O parecer da perita Wanise Borges Gouvea Barroso: inexistem motivos para cancelar o registro da espuma (./.)

A novidade, agora, obtida com exclusividade por VEJA: um parecer de uma perita técnica nomeada pela Justiça, Wanise Borges Gouvea Barroso, reafirmou a validade da patente, reconhecendo nela uma “atividade inventiva”. Além do mais, identificou inconsistências nas argumentações contrárias a Allemagne. De acordo com o documento da perícia, a negativa estava amparada em regulações posteriores à análise e aprovação e não apresentou qualquer justificativa para a mudança de entendimento. A Fifa alega não ter mais nada a dizer, estando tudo nos autos. “Há uma perda de segurança jurídica diante de opiniões contraditórias sem que houvesse alterações na apresentação do invento”, diz Alexandre Trinhain, especialista em propriedade intelectual e sócio da IPlatam Marcas e Patentes.

O caso, a partir da recente avaliação, segue para a manifestação das partes e sentença de primeiro grau. A patente já expirou e caiu em domínio público, conforme prevê a legislação. Mas, ao tentar anulá-la, a Fifa busca evitar pagar pelo tempo que usou o spray e esvaziar o objeto da ação em que foi condenada em 2021. Afinal, se não houver patente, não há o que indenizar. A briga tende a ir longe, e não há linhas divisórias que impeçam a contenda. Os dois lados se defendem como podem. Mas há um fato inquestionável. Uma possível derrota de Heine Allemagne é um empecilho a mais no avanço da engrenagem de inovações no Brasil, que não anda lá muito bem das pernas. O país aparece apenas na 54º posição no ranking do Índice Global de Inovação. A melhor marca, o 47º lugar, foi atingida em 2011. Que outros eurecas despontem no horizonte, apesar das dificuldades.

Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.