O jogo precisa mudar: o impacto das decisões sobre Robinho e Daniel Alves
Os casos fazem a sociedade reagir contra o crime de agressão sexual
Foi o melhor dos dias, foi o pior dos dias. A quarta-feira 20 de março entrará para a história da luta contra as agressões sexuais a que as mulheres são submetidas pela gangorra emocional impulsionada por duas decisões de sinal invertido. No fim da tarde, com o largo placar de 9 a 2, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, confirmaram a prisão em solo brasileiro do ex-jogador Robinho, 40, condenado na Itália a nove anos de cadeia por estupro coletivo de uma moça albanesa de 23 anos, em 2013, quando atuava pelo Milan — no dia seguinte, ele seria preso em Santos. “O Brasil não pode ser refúgio para criminosos”, disse o ministro Mauro Campbell, ao revelar seu voto.
Algumas horas antes, naquela quarta-feira indelével, o Brasil havia acordado com um anúncio feito em Barcelona, na Espanha: o lateral-direito Daniel Alves, também de 40 anos, condenado a quatro anos e meio de cana por ter agredido sexualmente uma mulher numa boate chique da capital catalã, poderia voltar para casa mediante o pagamento de uma fiança de 1 milhão de euros, o equivalente a pouco mais de 5,4 milhões de reais. Ele teve os passaportes brasileiro e espanhol retidos, está impedido de se aproximar a menos de 1 quilômetro da vítima sem que ela autorize, mas dentro de um mês (ele já ficou treze trancafiado) deixará de ver o sol nascer quadrado — embora o Ministério Público possa recorrer. No caso de Daniel, cabe a pergunta irônica seguida de resposta reveladora: quanto vale um estupro? Um milhão de euros. O veredicto de Robinho merece celebração, ainda que em futuro breve ele também possa acessar algum recurso que diminua a temporada de presídio.
Os dois episódios — embora um deles, o espanhol, tenha soado como impunidade — levam a uma constatação: os homens, em especial os jogadores de futebol que vivem em um mundo paralelo, animados por áulicos, os “parças”, não podem mais se esconder atrás do dinheiro e da postura misógina que os conduz. Robinho, aliás, desferiu em entrevista uma das frases mais ridículas que alguém poderia dizer: “Infelizmente existe o movimento feminista. Muitas mulheres, às vezes, não são mulheres, para falar o português claro”.
Para falar o português claro, ele tentou se defender de um crime ensaiando outro. E não parou por aí. Robinho, meses antes do julgamento, vivia como se nada houvesse. Em fevereiro, serelepe, participou de um churrasco organizado pela diretoria do Santos, time que já foi de Pelé. Diante da má repercussão, o clube praiano apressou-se em desmentir o que todo mundo viu. Como derradeira boia da salvação, antes da decisão do STJ, voltou a se manifestar por meio de um vídeo. Disse ter sofrido racismo na Europa, alegou premeditação da moça estuprada e assegurou nunca ter sido encontrado seu DNA no vestido da vítima. E — tal qual Daniel Alves — ancorou-se na balela do sexo consentido. Não deu certo.
A história, enfim, começa a andar para a frente, a passo de tartaruga. “Os homens agressores poderosos, ricos e influentes, percebem que estão sujeitos a pagar pelos seus crimes”, diz Luciana Terra, especialista em direito das mulheres e diretora do braço brasileiro do movimento #MeToo, nascido nos Estados Unidos contra os predadores de Hollywood. Há, reafirme-se, sutis sinais de mudança de humores. Um outro episódio de agressão sexual abafado foi o do treinador Cuca. Em 1987, ele e outros três colegas do Grêmio — clube pelo qual jogava — foram condenados por estupro de menor de idade na Suíça. O processo seria depois extinto porque o tribunal regional do distrito de Berna-Mittelland acatou o argumento da defesa, segundo a qual ele teria virado réu sem representação legal, à revelia.
No ano passado, contratado para dirigir o Corinthians, ficou no cargo durante apenas dois jogos — pressionado, especialmente pelas fãs da equipe feminina, apelidada de “as brabas”, pediu para sair. Retornou, agora, como técnico do Athletico Paranaense — ancorando-se na decisão dos tribunais suíços. Logo depois da estreia, Cuca leu um texto, que disse ter escrito ao lado da mulher e das filhas. Eis parte do que escreveram: “Eu pude levar minha vida contornando a história porque o mundo do futebol e dos homens em que vivo não tinha me cobrado nada. (…) mas o mundo está mudando, acho que para melhor, e por isso estou me dando conta de que não adianta eu entender o que é ser um grande treinador, pai, avô e esposo se eu não entender que o mundo é feito de outras coisas além do futebol, e que eu faço parte disso também”.
Foi de bom-tom, mas longe, muito longe, de autorizar o esquecimento do passado. Seria conveniente que tanto Robinho quanto Daniel Alves ensaiassem postura semelhante, mas não. Brota, então, uma certeza: eles serão para sempre símbolos de desonra — e quem haverá de lembrar que jogaram bola e não foram campeões do mundo pelo Brasil? Poucos, a não ser quem fecha os olhos para a agressão sexual e prefere se calar. O jogo precisa mudar. No Brasil, a cada oito minutos uma mulher é estuprada.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885