O dia em que Kissinger levou Pelé para a Casa Branca
"Peh-lay", "Peh-lay", ensinou o chanceler para o presidente Gerald Ford ao apresentar o rei do "soccer" - ops, do futebol
Da atuação de Henry Kissinger no Brasil, a série de livros de Elio Gaspari sobre a ditadura e as revelações do professor Matias Spektor, da FGV, não deixam pedra sobre pedra. O chanceler brincava pelas bandas de cá como se estivesse no quintal da Casa Branca. Em 1974, ele foi recebido em Brasília pelo general Ernesto Geisel, o presidente de plantão,de conhecida aversão à soberba dos americanos, mas que sabia o time pelo qual jogava. Em público, Kissinger dizia uma coisa, no privado costurava a manutenção do regime de quepe. Em público lembrava que “a necessidade de proteger e ampliar os direitos fundamentais da humanidade é um dos temas mais importantes do nosso tempo”. No gabinete privado, defendia o pragmatismo da real politik, sem pudores: “Se as violações de direitos humanos não forem tão ofensivas a ponto de não podermos conviver com elas, vamos fazer o que pudermos para aumentar nossa influência no país”. Veio, viu, conversou e foi embora – e não teve dúvida em se manter de um lado da história, e não do outro. No Brasil, defendia a postura que explicitara a Augusto Pinochet, no Chile: “Minha avaliação é que vocês são a vítima de todos os grupos esquerdistas do mundo”.
O Brasil, para Kissinger, era o que era – um ponto de mediana preocupação para os interesses americanos na América Latina. Mas ele gostava, sim, de um brasileiro em especial: Pelé. Nascido na Alemanha em 1923, filho de uma família judaica da pequena Fürth, o chanceler só chegaria aos Estados Unidos na adolescência, na antessala da Segunda Guerra Mundial e da expansão do nazismo. Sabe-se lá – e aqui é um chute – talvez levasse no gene a paixão pelo futebol, pela bola redonda e não pela oval. Quando lhe diziam soccer, ele gostava de insistir: football, como na Inglaterra. Em 1973, Kissinger levou Pelé ao encontro de Richard Nixon. Em 1975 houve uma outra oportunidade, ainda melhor, costura de esporte com negócios, a fama com dólares. O Rei tinha sido contratado para jogar pelo Cosmos de Nova York, atalho para uma tentativa de ampliar o futebol nos Estados Unidos. Uma troca de palavras com o presidente Gerald Ford viria a calhar. E assim foi. O documento que Kissinger fez chegar às mãos de Ford, sugerindo que recebesse Pelé – liberado para pesquisa de historiadores apenas em 2010 – é uma joia do choque entre culturas. O chanceler ensina a Ford como pronunciar o nome do camisa 10: “Peh-lay”. Depois informa (em inglês mesmo, aqui, porque fica melhor): “The sport is called football in Brazil”. Em seguida, sugere: “Pelé speaks fair english and the Brazilian Ambassador is fluent. However, an interpreter will be standing by”. Lista, finalmente, alguns tópicos para a prosa, entre eles a derrota da Inglaterra para os Estados Unidos, na Copa de 1950.
O documento liberado apenas em 2010: Kissinger passa a cola para Ford, que não teve tempo de segui-la
E em torno do que falaram?
Tudo muito bem combinado, até que Ford abrisse a porta para Pelé e uma bola. Não demorou um segundo para que o carisma do brasileiro virasse idioma universal, no gramado contíguo ao centro do poder. A foto de Pelé com terno listradinho fazendo embaixadinhas com Ford de olhar embasbacado girou o mundo. Trataram de alguma coisa do que Kissinger tinha sugerido, mas pouco. Para Pelé, a graça era outra, sempre. Um áudio daquele encontro pioneiro com Nixon, em 1973, gravado pelo sistema de escuta do Salão Oval, revelava um bate-papo singelo, em inglês. Nixon: “Você fala alguma coisa em espanhol?”. Pelé: “Não, português. Mas é tudo a mesma coisa”.
Um texto de Kissinger sobre Pelé
Em 1999, a revista TIME escolheu as 100 personalidades do século XX. Pelé era uma deles. Os editores pediram a Henry Kissinger um artigo de apresentação palatável a leitores americanos. Aqui:
“Os heróis caminham sozinhos, mas tornam-se mitos quando enobrecem as vidas e tocam o coração de todos nós. Para quem ama o futebol, Edson Arantes do Nascimento, mais conhecido como Pelé, é um herói. O desempenho de alto nível em qualquer esporte deve exceder a escala humana comum. Mas a performance de Pelé transcendeu a da estrela comum tanto quanto a estrela excede a performance comum. Ele marcou em média um gol em todos os jogos internacionais que disputou – o equivalente a um jogador de beisebol fazendo um home run em todos os jogos da World Series ao longo de 15 anos. Entre 1956 e 1974, Pelé marcou um total de 1 220 gols – não muito diferente de fazer uma média de 70 home runs por ano durante uma década e meia. Enquanto jogou, o Brasil venceu a Copa do Mundo, disputada quadrienalmente, três vezes em 12 anos. Ele marcou cinco gols em um jogo seis vezes, quatro gols 30 vezes e três gols 90 vezes. E não o fez com indiferença ou desdém – como fazem muitas estrelas modernas – mas com uma alegria contagiante que fez com que até as equipes sobre as quais triunfou compartilhassem seu prazer, pois não é nenhuma desgraça ser derrotado por um fenômeno que desafia a emulação. Ele nasceu nas montanhas das grandes cidades costeiras do Brasil, na empobrecida cidade de Três Corações. Apelidado de Dico pela família, era chamado de Pelé pelos amigos do futebol, palavra cujas origens lhe escapam. Dico engraxou sapatos até ser descoberto aos 11 anos por um dos maiores jogadores do país, Waldemar de Brito. Quatro anos depois, De Brito levou Pelé para São Paulo e declarou aos descrentes diretores da temática profissional santista; “Esse menino vai ser o maior jogador de futebol do mundo”. Ele rapidamente se tornou uma lenda. Na temporada seguinte, ele foi o artilheiro de sua liga. Como o Times de Londres diria mais tarde, “Como se escreve Pelé? D-E-U-S” Ele é conhecido por interromper a guerra: ambos os lados na guerra civil da Nigéria estabeleceram um cessar-fogo de 48 horas em 1967 para que Pelé pudesse jogar uma partida na capital, Lagos. Para entender o papel de Pelé no futebol, é necessária alguma discussão sobre a natureza do jogo. Nenhum esporte de equipe evoca o mesmo tipo de paixão primordial e universal como o futebol.
Durante a Copa do Mundo, os jogos das seleções nacionais de futebol impõem a programação da televisão ao ritmo de vida. No ano passado, participei de um jantar para membros importantes do estabelecimento britânico e convidados ilustres de todo o mundo na sóbria Spencer House em Londres. Os donos da casa tiveram o azar de terem escolhido a noite do jogo entre Inglaterra e Argentina – sempre uma rixa sangrenta, agravada nesta ocasião pela memória da crise das Malvinas. O impecável público (ou pelo menos o suficiente para influenciar os apresentadores) fez questão de que os aparelhos de televisão fossem instalados em locais estratégicos, tanto na recepção quanto no jantar. A partida foi para a prorrogação e exigiu uma disputa de pênaltis depois, de modo que o orador principal não conseguiu entregar sua mensagem até 23h E como a Inglaterra perdeu, o público não estava exatamente com humor para nada além de luto. Quando a França finalmente venceu a Copa do Mundo, Paris ficou paralisada de alegria por quase 48 horas, o Brasil de desânimo por um período de tempo semelhante. Eu estava no Brasil em 1962 quando a seleção nacional venceu a Copa do Mundo no Chile. Tudo parou por dois dias enquanto o Rio festejava um carnaval prematuro.
Não há nada comparável nos EUA. Nossos torcedores não se identificam com suas equipes dessa forma, em parte porque os esportes coletivos americanos são mais cerebrais e exigem um grau de habilidade que está além do alcance do leigo. O beisebol, por exemplo, requer um conjunto de habilidades díspares: acertar uma bola lançada a 90 km/h, pegar uma bola voando na velocidade de uma bala e lançar longas distâncias com grande precisão. O futebol requer um conjunto diferente de habilidades para cada uma de suas 11 posições. O espectador dos EUA, portanto, se vê vendo dois eventos distintos: o que está realmente acontecendo no campo de jogo e a tradução disso em estatísticas detalhadas e minuciosas. ele quer que seu time vença, mas também se comprometeu com o triunfo estatístico da estrela que ele admira. O herói do esporte americano é como Joe DiMaggio – uma espécie de Lone Ranger que caminha na solidão além do alcance da experiência comum, elevando-nos além de nós mesmos. O futebol é um tipo de jogo totalmente diferente. Todos os jogadores devem possuir o mesmo tipo de habilidades – especialmente no futebol moderno, onde a distinção entre jogadores ofensivos e defensivos foi dissolvida. Sendo contínuo, o jogo não se presta a ser dividido em uma série de jogadas componentes que, como no futebol ou no beisebol, podem ser praticadas. O beisebol e o futebol emocionam pela perfeição de suas repetições, o futebol pela improvisação de soluções para necessidades estratégicas em constante mudança. O futebol requer pouco equipamento, além de um par de sapatos. Todo mundo acredita que ele pode jogar futebol.
Assim, o futebol fora da América do Norte é verdadeiramente um jogo para as massas, que podem se identificar com suas paixões, seus triunfos repentinos e suas desilusões inevitáveis. O beisebol e o futebol são uma exaltação da experiência humana; o futebol é sua encarnação.
Pelé é, portanto, um fenômeno diferente do astro do beisebol ou do futebol americano. As estrelas do futebol dependem de seus times, mesmo quando os transcendem. Alcançar o status de mítico como um jogador de futebol é especialmente difícil porque o pico de desempenho geralmente é bastante curto – apenas o menor número de jogadores tem o melhor desempenho por mais de cinco anos. Incrivelmente, Pelé teve um desempenho de alto nível durante 18 anos, marcando 52 goals em 1973, no seu 17º ano como profissional. As estrelas do futebol contemporâneo nunca chegam a 50 gols por temporada. Para Pelé, que tinha marcado três vezes mais de 100 gols por ano, era sinal de aposentadoria.
O status mítico de Pelé deriva também da forma como encarnou o personagem da Seleção Brasileira. Seu estilo afirma que virtude sem alegria é uma contradição em termos. Seus jogadores são os mais acrobáticos, senão sempre os mais competentes. Os times brasileiros jogam com contagiante exuberância. Quando aquelas camisas amarelas vão para o ataque – o que é na maioria das vezes – e seus torcedores vibram ao som inebriante das bandas de samba, o futebol se torna um ritual de fluidez e graça. Na época do Pelé, os brasileiros sintetizaram o futebol como fantasia. Vi Pelé no auge apenas uma vez, na final da Copa do Mundo de 1970. O adversário do Brasil foi a Itália, que jogou sua defesa dura com arremetidas repentinas para empatar em 1 a 1, desmoralizando os brasileiros. A Itália poderia facilmente ter concentrado ainda mais sua defesa, até que seu frenético oponente começasse a cometer os erros que envolveriam sua ruína. Mas, liderado por Pelé, o Brasil não quis saber. Atacando como se os italianos fossem uma equipe de treino, os brasileiros jogaram no chão por 4 a 1. Eu vi o Pelé algumas vezes depois, quando ele estava jogando pelo NY Cosmos. Ele não era mais tão rápido, mas estava exuberante como sempre. A essa altura, Pelé já havia se tornado uma instituição. A maioria dos fãs modernos nunca o viu jogar, mas de alguma forma eles sentem que ele faz parte de suas vidas. Ele fez a transição de superstar para figura mítica.”
Um “não” brasileiro
José Casado, colunista de VEJA, revela um episódio torto da paixão de Kissinger pelo futebol brasileiro. Foi em 2014. O veterano diplomata queria acompanhar a Copa de 2014 mas foi aconselhado a desistir da ideia.