Método repressivo no treino de ginastas pode causar danos, diz estudo
Pesquisa envolveu ex-atletas olímpicas que nos anos 2000 frequentaram centro de alto rendimento
A ginástica artística feminina tornou-se, nas últimas décadas, uma espécie de cereja do bolo das Olimpíadas. As apresentações das ginastas lotam ginásios e encantam telespectadores em todo o mundo. Mas, por trás dessas exibições de beleza, graça e habilidade, pode existir um “lado b” que pouca gente conhece. O treinamento engloba uma série de sacrifícios que não são captados pelos holofotes da mídia. E, na busca constante pela perfeição técnica, há o risco de que surjam métodos coercitivos e repressivos no caminho do sucesso esperado.
“Realizamos uma pesquisa qualitativa com oito ex-ginastas de nível olímpico que, no período de 2001 a 2005, frequentaram um centro de treinamento que visava o alto rendimento esportivo e operava em regime de internato. E constatamos problemas de over-training e relações autoritárias de poder, com impactos de longo prazo”, diz o pesquisador Vítor Ricci Costa, da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (FEF-Unicamp).
Costa é o autor principal do artigo Living within and outside a disciplinary bubble: a Foucauldian analysis of Brazilian gymnasts’ experiences in boarding school, publicado no periódico Sport, Education and Society, que apresenta e interpreta os depoimentos de cinco das oito atletas entrevistadas.
Devido ao regime de internato, as garotas, quase sempre muito jovens, permaneciam longos períodos sem contatos com familiares e amigos. Seus pesos eram obsessivamente controlados, por meio de três pesagens diárias. E, para que permanecessem tão leves quanto seus treinadores julgavam necessário, eram submetidas a dietas alimentares extremamente restritivas, com aportes de apenas 800 calorias por dia. Isso a despeito de treinarem diariamente de quatro a seis horas. Os erros eventualmente cometidos na execução dos exercícios motivavam novas e exaustivas repetições das mesmas séries, que Costa interpreta como uma espécie de punição.
Em respeito à privacidade das entrevistadas, ele não revela seus nomes e as apresenta com pseudônimos no artigo. Mas afirma que todas foram ginastas de primeiro nível, bastante reconhecidas por suas performances. “Do grupo das cinco entrevistadas mencionadas no artigo, duas foram ginastas olímpicas. As outras três representaram a seleção brasileira de ginástica em campeonatos internacionais: mundiais, copas do mundo, pan-americanos e sul-americanos. Quando as entrevistei, já estavam na faixa dos 30 a 40 anos e algumas ainda enfrentavam dificuldades de adaptação social depois do final da carreira esportiva”, informa o pesquisador.
Essas ginastas tinham começado a treinar com 5 a 7 anos e, aos 20, já haviam se aposentado. Então, passaram a buscar outros caminhos na vida, sem estarem preparadas para isso.
Costa informa que, atualmente, a idade média de encerramento da carreira está um pouco mais alta. A extraordinária Rebeca Andrade, campeã olímpica e mundial, continua na ativa, com 23 anos. E conquistou duas medalhas no Campeonato Mundial de Ginástica Artística de 2022, realizado em Liverpool, no Reino Unido: ouro na categoria individual geral e bronze no solo. Também o regime de internato foi abandonado há mais de dez anos. Mas a concepção que prevalece no preparo das atletas ainda é muito parecida com a que o pesquisador detectou em seu estudo.
“Apesar de resultados mundialmente expressivos, precisamos prestar atenção aos métodos utilizados para produzir o sucesso nessa modalidade. A cultura hegemônica glorifica o pensamento de que o sucesso só pode ser alcançado com longas horas de prática, especialização precoce, sacrifícios como os de treinar e competir com dores e lesões e a presença de treinadores autoritários, capazes de controlar a ginasta e todo o seu entorno, inclusive fora do ginásio. Essa corrente de pensamento tem potencial para criar uma bolha disciplinar que pode normalizar situações perigosas, como assédio e abuso”, alerta Costa.
O conceito de “bolha disciplinar” foi explorado por ele em sua pesquisa de doutorado, realizada com apoio da FAPESP. Nesse estudo, concluído em 2022, o pesquisador apoiou-se fortemente no pensamento do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) para investigar a relação entre ginastas, treinadores, pais e todo o entorno dessa tríade. Obras seminais do pensamento foucaultiano, como Arqueologia do Saber, História da Sexualidade e Vigiar e Punir, são destaques na vasta bibliografia utilizada.
“A relação afetiva entre as atletas e seus treinadores é essencial para superar os desafios da modalidade. Por outro lado, identificamos desequilíbrios que contribuem para um padrão autocrático nesse relacionamento. Dessa forma, as atletas costumam ser dependentes do treinador e são ensinadas a agir sem questionar, tornando-se corpos dóceis, produtivos e submissos”, escreve Costa no resumo de sua pesquisa.
Para “voar” em acrobacias espetaculares, é conveniente que esses corpos sejam muito pequenos e magros. Daí as absurdas dietas de 800 calorias diárias constatadas no estudo, felizmente superadas no contexto atual.
O depoimento de uma das entrevistadas, identificada no artigo com o pseudônimo de Verônica, dá uma ideia de quão longe podia chegar essa preocupação obsessiva com o peso: “Nos sábados, quando ninguém estava olhando, comíamos guloseimas. Depois, nos recusávamos a comer qualquer outra coisa, de sábado à tarde até segunda-feira. Mesmo assim, nos domingos, corríamos com sacolas plásticas enroladas no corpo, tomávamos laxantes e não bebíamos água. Aprendemos a fazer loucuras. Passei dois anos sem beber água. Chupava gelo. Todo mundo dizia que tinha algum problema de peso”.
Distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia, são relatados na literatura internacional sobre o treinamento de ginastas. Um dado recolhido por Costa em seu estudo foi a ocorrência de cálculos renais, que tanto podem ter estado associados à baixa ingesta de água quanto ao uso abusivo de suplementos de cálcio, para ajudar a recuperar fraturas por estresse, ocasionadas pelo treinamento intensivo, sem o devido tempo de recuperação.
Outra atleta, cognominada Alice, conta que, aos 15 anos, por indicação da equipe multidisciplinar encarregada de dar suporte aos treinos, chegava a tomar cinco anti-inflamatórios por dia. “Lembro que teve um campeonato, uma Copa do Mundo, em que competi com três dedos quebrados. Não conseguia andar, mas competi. Dois meses depois, o médico disse: ‘Quer fazer um raio x?’ Eu fiz. E ele falou: ‘Tá calcificando errado’. Todas estávamos muito, muito machucadas”.
Infraestrutura de alto nível
Esses depoimentos podem dar a impressão de que o centro de treinamento fosse um lugar precário. Mas não era essa a imagem. Como afirma Costa em seu artigo, o centro tinha infraestrutura de alto nível e equipe multidisciplinar de treinadores, nutricionistas, fisioterapeutas, professores e médicos. Sua missão era desenvolver ginastas de padrão olímpico. O problema, segundo o pesquisador, era a concepção que embasava tudo isso.
É o que fica bem claro nesta outra frase, bastante amarga, de Alice: “Mostraram na TV que a seleção brasileira tinha um centro maravilhoso, com equipe multidisciplinar. OK. Nós tínhamos médico, nutricionista, fisioterapeuta, professores. Mas eles só atendiam aos comandos de gerentes e treinadores. Eles realmente não se importavam conosco. Por exemplo, não tínhamos aulas, os professores iam ao centro contar piadas para tentar nos animar. Eu deixei o centro mais burra do que quando entrei. Os gerentes diziam ao público, na TV, que forneciam todas as condições. Acho que muitas ginastas acreditaram. O pessoal do centro as ensinou a acreditar nesse conto de fadas”.
Segundo Costa, o sistema montado incutia a ideia de que a disciplina preparava para a vida real. E, como mostrou Foucault em outros contextos, a tendência é a de que o reprimido acabe introjetando a repressão, submetendo-se a várias formas de autocontrole. Essa combinação de repressão nos treinamentos e sucesso nas exibições públicas confinou as meninas em uma espécie de realidade paralela. “Quando se aposentaram e saíram da bolha, muitas delas enfrentaram grandes problemas para se reinserir na sociedade, recuperar os anos perdidos em termos de escolarização e reencontrar um lugar no mundo”, comenta o pesquisador.
O caráter disciplinador da educação física é antigo no Brasil. Trata-se de uma espécie de marca de origem, ligada ao fato de que, por muito tempo, boa parte dos professores e treinadores foi oriunda do meio militar. Na época da ditadura militar (1964-1985), o regime investiu em treinamentos e competições. Mas, de acordo com Costa, essa tendência se intensificou no período estudado, quando, com o objetivo de alçar as ginastas brasileiras ao nível de excelência internacional, foi criado um centro de treinamento com regime de internato, onde tudo passou a ser minuciosamente controlado.
“O objetivo deles era produzir ginastas olímpicas, custasse o que custasse. Se você estava feliz com seu treinador e com seu clube, não importava. Tinha que mudar de outro Estado para o centro porque, se queria treinar para a equipe nacional, tinha de morar lá”, afirmou a ginasta cognominada Iris.
Conforme Costa, o mundo da ginástica olímpica feminina foi profundamente abalado no triênio 2016-2017-2018, quando Lawrence Nassar, médico osteopata da equipe nacional de ginástica dos Estados Unidos, foi acusado de abusar sexualmente de mais de 150 ginastas, que depuseram contra ele. Entre elas estava a superestrela Simone Biles, detentora de 25 medalhas em campeonatos mundiais, incluindo quatro ouros nos Jogos Olímpicos.
Nassar foi condenado à prisão perpétua e o escândalo fez com que todo o conselho de 18 membros da Federação de Ginástica dos Estados Unidos apresentasse suas demissões. “O caso Nassar chamou a atenção sobre o que acontece ou pode acontecer no ginásio. A partir disso, órgãos reguladores, como a Federação Internacional de Ginástica, comitês olímpicos nacionais e federações, investiram em políticas de prevenção e enfrentamento ao abuso. No entanto, não houve investimento na instrumentalização dos treinadores, com cursos e reciclagem. Isso faz com que a concepção disciplinar continue viva”, sublinha Costa.
O pesquisador enfatiza que o problema não é o esporte, nem os treinadores de maneira isolada, mas o modelo: “Precisamos compreender os limites entre disciplina e coerção, maus-tratos e punição. A disciplina é importante, mas ainda há essa confusão. Nosso estudo mostrou também que as estruturas de isolamento, que separam as ginastas de suas famílias e do ambiente escolar, são muito prejudiciais. No Brasil, felizmente, isso foi abandonado há mais de dez anos”.
O pesquisador recomenda que sejam criados sistemas de proteção às ginastas, comunidades que atuem para garantir a saúde e o bem-estar nos ambientes de prática. “O esporte envolve sacrifícios e abdicações. Alto rendimento esportivo é para poucos. Então, não propomos que o treinamento seja menos exigente, mas esperamos que exista uma cultura de respeito e segurança nos ambientes que preparam esses poucos para brilhar no esporte. As ginastas começam quase sempre muito novas, sem condições de serem totalmente donas do processo. Mas que suas capacidades, seus interesses e suas limitações sejam tratados de maneira respeitosa”, conclui.
Myrian Nunomura, professora titular da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EEFERP-USP) e orientadora da pesquisa de doutorado de Costa, complementa: “Os depoimentos das ginastas deveriam ser refletidos, particularmente, por treinadores, pais e atletas que almejam o alto rendimento esportivo. Por vezes, o sonho olímpico se torna um pesadelo, e as pessoas imersas não conseguem despertar. Por isso, propomos que haja uma covigilância nesses contextos”.