Fábio Carille: ‘Quero mais 7 anos no Corinthians e depois Europa’
Treinador ‘novato’ é campeão paulista, líder do Campeonato Brasileiro e ídolo da torcida. Mas quer muito mais
Não se deixe enganar pela fala mansa e pela simplicidade típicas de garoto do interior: Fábio Carille é um homem ambicioso e sabe bem o que quer. Depois de oito anos como auxiliar de Mano Menezes, Tite e outros técnicos no Corinthians, o ex-jogador de poucas glórias ganhou, enfim, a chance de ser efetivado. E, contrariando os prognósticos, se tornou a sensação de 2017: campeão paulista e líder do Brasileirão com campanha recorde no primeiro turno e futebol de boa qualidade. A desconfiança sumiu e hoje Carille é um ídolo da torcida.
Nascido na capital paulista e criado em Sertãozinho (SP), cidade de pouco mais de 120.000 habitantes a cerca de 330 km de São Paulo, na região de Ribeirão Preto, Carille foi um zagueiro e lateral-esquerdo de pouca fama na década de 90, com passagens por clubes como Coritiba, Paraná, Santa Cruz, Juventus-SP, Gama e por curto período pelo Corinthians. A carreira em comissão técnica decolou mais rapidamente: então auxiliar do Grêmio Barueri, ganhou uma chance de compor a comissão técnica de Mano Menezes, em 2009. E não saiu mais do clube.
A boa fase e a política do Corinthians, que na última década mudou pouco de treinador (duas delas a contragosto – Mano Menezes e Tite foram chamados pela CBF), dão tranquilidade a Carille. “Quero ser um dos pioneiros do futebol brasileiro em ficar muitos anos no clube. Claro que não penso em ficar 20 anos como alguns ficaram na Inglaterra. Mas seis, sete anos…” Carille é educado, mas dispensa tom professoral, sobretudo diante de seus jogadores. O treinador não gosta de ser comparado ao catalão Pep Guardiola, mas admite se inspirar no técnico do Manchester City e tem um objetivo determinado: trabalhar no futebol europeu. Nessa entrevista, o treinador de 43 anos garante que este é só o começo de uma carreira longa. Ele também falou sobre Tite, Jô, Drogba, finanças do clube, e ofertas de outros clubes.
https://www.youtube.com/watch?v=MWtNrGZuoSg
Quando o senhor assumiu o cargo, em janeiro, foi visto com certa desconfiança. Já se sentia preparado após tantos anos de “estágio” no clube? Esses oito anos como auxiliar foram muito importantes. Não tive experiência como atleta em equipes grandes, apenas uma passagem em 1995 aqui no Corinthians. E durante esses últimos oito anos, dirigi a equipe dez vezes, sendo seis jogos em 2016, o que me fortaleceu, porque comandei reuniões, treinamentos e tomei decisões – funções de um técnico. Quando recebi o convite, em 22 de dezembro, não tive dúvida, porque vi que era meu momento. Se eu fosse torcedor também desconfiaria, porque se criou uma expectativa de que fosse contratado um treinador badalado. Eu não imaginava ser campeão paulista nem ter um início de Brasileiro assim, mas também sabia que não seria tão ruim como alguns imaginavam.
Qual é a chave para o sucesso de 2017? Os atletas se apresentaram dia 11 de janeiro e a comissão no dia 3. Traçamos o perfil para a equipe e no primeiro trabalho com bola tudo foi feito dentro de acordo com aquele planejamento. É preciso ter paciência e aceitar um certo sofrimento: às vezes o time não vai bem e o treinador quer mudar tudo no meio da competição. Isso causa confusão e os jogadores passam a não confiar no seu trabalho. Nesse ano, os primeiros jogos não foram bons. Precisávamos de bons resultados para ter confiança e, em seguida, o time chegou perto do desempenho que eu esperava.
Como foi possível transformar atletas antes contestados, como Leandro Castán e Felipe, em jogadores de primeira linha? Eu me tornei responsável pelos trabalhos específicos de defesa em 2011, sempre monitorado pelo Tite. Por ter sido sete anos zagueiro e sete anos lateral, tinha facilidade para passar o que queríamos aos jogadores. O Felipe é uma prova de que jogador com qualidade pode vingar. Com ele foram três anos de trabalho. O mesmo aconteceu com Castán, Gil, e agora com o Pedro Henrique. Sempre falei para não deixarem de acreditar, fazer trabalhos complementares técnicos depois do treino. Todos sempre ficaram 20 minutos a mais fazendo exercícios de cabeceio, de passe.
Como o senhor faz para se atualizar como treinador? A minha busca é sempre por equilíbrio, ter uma equipe que ataca e defende bem. Aprendi muito com todos os técnicos com quem trabalhei, mas o futebol mudou muito, antes havia pouco treino tático, de organização. E sigo uma linha mais italiana, nisso aprendi muito com o Tite, que fez estágios na Itália ou com treinadores italianos. Também sinto que melhorei muito os trabalhos de parte ofensiva, mas posso evoluir mais. Sempre converso com atletas que estão na Europa, caso do Felipe, que está no Porto, perguntando quais trabalhos são feitos por lá que podemos trazer para o nosso dia a dia.
Hoje existe uma ala “boleira” e uma “estudiosa” de treinadores do futebol. O senhor então se identifica mais com a segunda? Sim, porque detalhes fazem diferença no futebol e devemos integrar vários departamentos, como o nosso centro de inteligência. O treinador deve estudar o dia a dia, o adversário, o que foi feito de bom e ruim nos últimos jogos. Acho que os profissionais que foram atletas e também estudam têm um equilíbrio melhor.
O senhor parece ser bem calmo. Essa é sua personalidade ou uma necessidade do treinador moderno para lidar com tantas estrelas? Sou assim mesmo. Se tentasse ser diferente, me perderia. Sempre fui muito tranquilo, fui expulso uma vez em 500 jogos na carreira em um lance que eu nem estava envolvido. Falo do mesmo jeito com o Jadson, com o Pedrinho, no mesmo tom de voz, a mesma linha de trabalho. Acho que assim se ganha o grupo.
O Corinthians está entre os times mais disciplinados e chegou ao ponto de, contra o Sport, fazer mais gols (três) do que faltas (duas). Como consegue isso? Peço que evitem faltas. Além disso, quando o time está organizado, consegue cortar o passe e evita a falta. Peço para controlar o adversário num canto, sem pressa, esperar o momento certo para tomar a bola.
O senhor disse que o atleta profissional hoje é muito mais inteligente. Por quê? Na minha época, se fazia pouco de tática. Eram coletivos longos, com ideia de jogo, e a qualidade sempre prevalecia. Hoje, além do talento, o jogador tem de ter a leitura do jogo, saber jogar sem bola. Por exemplo, mesmo que a bola esteja do lado oposto, o lateral tem de fechar, participar de uma situação defensiva mesmo longe da bola. A TV também ajudou muito, porque na minha época, ainda mais em Série B e C, íamos para o jogo sem saber nada do adversário. A evolução do jogo fez com que o atleta seja muito mais inteligente.
O senhor concorda com Guardiola, que considera mais importante a ideia e não o sistema de jogo? Com certeza, nós profissionais às vezes falamos de forma muito acadêmica, o atleta não entende e fica difícil. E esse negócio de 4-4-2, 4-2-3-1 é muito bonito para o início de uma transmissão de rádio ou TV, mas o que determina o posicionamento de uma equipe é a bola. Temos todas as formas de jogar, já defendi até com seis, com Jadson e Romero na linha defensiva. O Jô muitas vezes faz a cobertura do lateral…
E como convencer atletas experientes como Jô e Jadson a participar ativamente do trabalho defensivo? Dizendo a eles o seguinte: os laterais não vão até o fundo ajudar vocês a fazer gol? Então porque vocês não podem ajudá-los a marcar? Isso é passado com o conceito de “perde-pressiona” nos treinos. Temos lances do Romero dentro da nossa área marcando e na sequência indo fazer gol. São essas mensagens curtas no treino que vão sendo incorporadas. Eles então vão para o campo e fazem isso sem pensar. É pouca conversa e muita repetição.
O que o senhor acha das comparações a Tite? Isso não me incomoda, porque foram mais de cinco anos de trabalho. Quem acompanha nosso dia a dia vê que a linha de trabalho é muito parecida, buscando compactações, organização. Falo bastante com o Tite, mas muito pouco sobre futebol. Porque eu sei as respostas que ele me daria por ter convivido tanto com ele (risos).
E o apelido de ‘Pep’ Carille? Não gosto. Porque quando começam a falar isso, o torcedor acha que sou o Guardiola. Lembro que no começo do ano uma reportagem sobre o Rodrigo Figueiredo, jogador da base, dizia que ele seria “o novo Sócrates”. Imagine o peso que isso traz para um garoto de 19 anos? Respeito demais todos os técnicos, mas valorizo muito os brasileiros. O Barcelona do Guardiola tinha vários talentos que ficaram juntos por anos e, se não me engano, havia sete jogadores das categorias de base. Aqui no Brasil a cada seis meses é um processo de troca, tem de remontar o time e começar tudo de novo.
O Corinthians conseguiu segurar todos os atletas nesta temporada. Não havia a necessidade de “fazer caixa”? Tenho certeza que no final do ano vão sair alguns atletas, porque a campanha os valorizou muito. Alguns têm o sonho de ir para a Europa e não gosto de brecar isso. Não sei dizer se havia necessidade de vender alguém. Depois do Paulista, em uma conversa com a diretoria eu disse que teríamos 95% de chance de chegar à Libertadores 2018, se não saísse nenhum atleta. Agradeço à diretoria pelo esforço, porque sei que houve muitas propostas.
Quais seus objetivos no clube? Já deixei bem claro: quero ser exceção do futebol brasileiro e ficar muitos anos em um clube. Estou num processo de aprendizado ainda muito intenso, com margem de crescimento. Não sei se vou ser campeão, mas ano que vem com certeza serei um técnico melhor, que toma decisões melhores. E o mesmo acontecerá em 2019, 2020… Não penso em ficar 25 anos, mas seis, sete anos. Dependemos de resultados, mas uma continuidade dessa seria boa para o futebol brasileiro.
Mas o senhor recebeu ofertas… Só tive uma proposta oficial, da China, antes do jogo que ganhamos do Grêmio, em Porto Alegre. Tive 20 minutos de conversa e assim que o representante chinês disse que era para sair agora nem falamos em números, cortei. Dificilmente vou quebrar um contrato um dia. Não me chegou nada sobre Flamengo e Atlético-MG, não teria cabimento um clube do Brasil me procurar porque sabem que eu não sairia.
O senhor já trabalhou na China como atleta, no Guangzhou. Como foi essa experiência? Fiquei lá por quatro meses, numa época bem diferente do futebol chinês. Foi em 2003, ano em que o campeonato começou tarde por causa da pneumonia asiática. Ficamos presos em um centro de treinamento. Nós estrangeiros estávamos tranquilos, porque tínhamos tomado todas as vacinas. Tudo que foi combinado foi cumprido, mas sem assinar contrato, porque o campeonato não podia começar. Foi bom, mas eu quis voltar, assinei contrato com o Gama e 20 dias depois o Guangzhou me ligou para retornar. Não voltei. Gostei demais do país e acredito que hoje esteja ainda melhor para os estrangeiros.
https://www.youtube.com/watch?v=2eO2ZXIphJg
O senhor participou do título mundial de 2012. Como foi avisar o Douglas que ele seria sacado na final contra o Chelsea? O Tite sempre teve três auxiliares e direcionava um para cada jogo. E essa escolha foi difícil, porque o Douglas fez o segundo semestre como titular, jogando bem. Ele jogou a semifinal, mas fomos assistir ao jogo do Chelsea, contra o Monterrey, e vimos um lado esquerdo muito forte do time inglês. Vimos que o Danilo teria dificuldade para jogar. Decidimos que o Jorge Henrique voltaria ao time para aquele jogo. Foi tudo muito claro, não era para prejudicar ninguém. O Tite decidiu que o Jorge Henrique seria a melhor opção, conseguimos bloquear aquele lado esquerdo e saímos vitoriosos, inclusive o Douglas.
E qual sua participação na eliminação para o Tolima, na pré-Libertadores de 2011? Eu não estava lá na Colômbia, fiquei no clube. O Tite ainda não me conhecia direito e eu só comecei a ir para o banco no Brasileirão de 2011. Mas voltamos à questão de continuidade, algo que o Corinthians busca. Naquela época era muito fácil demitir o Tite, com todo mundo reclamando, torcida, imprensa. Mas foi avaliado o trabalho em campo, com ideias claras, e a opinião de jogadores experientes como William, Ronaldo e Roberto Carlos. Se o Tite tivesse saído, teríamos conquistado tudo isso?
O senhor parece ser muito querido. Já teve algum desafeto no futebol? Não. Em todo lugar que trabalhei deixei amigos que ainda me mandam mensagens. O que mais me incomoda é quando colocam palavras na minha boca. Por exemplo: saíram notícias de que eu barrei a contratação do Drogba. Mas a negociação nem chegou à comissão. Chegaria a mim em algum momento, mas não chegou. E os torcedores me cobraram, no posto de gasolina, no shopping… Esse tipo de coisa me incomoda demais.
Mas o senhor acha que Drogba teria sido uma boa contratação? Tenho muitas dúvidas. Porque nos lembramos daquele Drogba do Chelsea, de 32, 33 anos, que atropelava na força, na imposição. Falei com o David Luiz, que me disse que o Drogba é uma pessoa maravilhosa, de grupo. Ele dependia muito da força, diferente de um Ronaldo Fenômeno, de mais qualidade técnica. Eu gosto de avaliar jogadores nos últimos seis meses, um ano. Mas, aos 39 anos, jogando na liga americana, que tem uma intensidade mais baixa…
Como imagina sua carreira para daqui 20 anos? As coisas na minha vida têm acontecido muito rápido. Penso muito no momento, no dia a dia, mas algo tem me chamado a atenção nos últimos tempos: quem sabe eu não seja também um dos primeiros brasileiros a fazer sucesso na Europa? Tenho dado entrevistas para emissoras de Inglaterra, Espanha, Portugal, França, Itália. Eu me assusto com isso mas tenho pensado: ‘por que, não?’ Meu grande objetivo é aprender e crescer aqui e quem sabe um dia fazer sucesso na Europa.
O senhor já domina algum outro idioma? Sei o básico do básico do inglês, já comecei várias vezes e não continuei. Se essa oportunidade aparecer, penso em fazer como o Guardiola: ficar seis meses no país aprendendo a língua, como ele fez com o alemão. Pelo meu jeito de ser, teria dificuldade de aprender um idioma estando empregado, chego às 7h30 no clube e saio às 19h30. Já tentei, mas parei porque estava me atrapalhando.