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Doping nas alturas: a polêmica do gás xenônio no Everest

Ao usar a substância proibida em disputas esportivas, um grupo de alpinistas do Reino Unido deflagra barulho inédito

Por Natalia Tiemi Hanada Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 jun 2025, 08h00

A resposta ainda hoje soa com ironia, entre a provocação e o desafio. Em 1924, antes de tentar subir ao cume dos 8 849 metros do Everest, o alpinista britânico George Mallory foi instado a dizer por que decidira enfrentar a expedição rumo ao topo: “Porque está lá”. A máxima virou dístico dos montanhistas que sonham cravar bandeira no pico da Cordilheira do Himalaia, entre o Nepal e o Tibete. Sim, está lá, e os 7 269 seres humanos que findaram a aventura, em 100 anos de história, só venceram o obstáculo porque puderam complementar o que lhes faltava no ar rarefeito: oxigênio. Na semana passada, contudo, o anúncio de uma conquista tornou turvo o ambiente alvo da neve que não derrete: um grupo de quatro ex-militares britânicos, acompanhados de um fotógrafo e cinco xerpas — os heroicos autóctones que servem de guia e carregadores de bagagem —, subiram e desceram o colosso em apenas uma semana, tempo recorde. Deu-se o assombro, dado serem necessárias semanas, por vezes meses, de aclimatação com a altitude.

O grupo reconheceu ter usado o gás xenônio por ao menos dez semanas antes de pousar no sopé do Everest e dali ir ao céu. Por meio de máscaras atreladas a ventiladores, pouco a pouco, na fase de preparação, iam recebendo doses cada vez mais volumosas da nobre substância — nobre do ponto de vista químico, porque entre os esportistas de cordas e mosquetões o xenônio é um anátema, e usá-lo fere a ética estabelecida.

CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE? - O lixo no caminho: afronta à natureza
CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE? - O lixo no caminho: afronta à natureza (Sanjog Manandhar/AP/Imageplus)

Inodoro e incolor, usado na fabricação de lâmpadas, é aliado anestésico em procedimentos cirúrgicos e chegou a ser apontado como eficaz até para o controle do Alzheimer. Entre atletas, contudo, é tido como doping. Explica-se: a inalação de xenônio aumenta a produção de uma proteína que estimula a produção de um hormônio, o EPO, responsável pela regulação de glóbulos vermelhos no organismo, vetores do transporte de oxigênio pelo corpo. Não por acaso, em 2014 a Agência Mundial Antidoping, a WADA, proibiu seu uso em competições olímpicas. Naquele ano, campeões russos admitiram ter competido com a muleta do xenônio nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. As escaladas, contudo, não têm organização esportiva que ampare o que é lícito e proíba a contrafação. Resultado: imenso barulho.

Waldemar Niclevicz, o primeiro brasileiro a chegar ao topo do Everest, em 1995, na companhia de Mozart Catão, não mede palavras ao cutucar a glória de quem anda no acostamento, à margem do combinado, ainda que não estabelecido por regras pétreas. “É doping, sim, e as pessoas se dopam porque não querem ficar com dor de cabeça. Não que eu queira ficar com dor, mas é uma reação natural dos seres humanos. Ela melhora à medida que aumenta a capacidade de absorção do pouco oxigênio oferecido pela natureza.” De modo ainda mais claro: os tanques de oxigênio, o.k., estão dentro do esperado desde sempre, como mostram antigas fotografias na “mãe de todas as montanhas”.

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PREPARAÇÃO - Imagem dos primórdios da subida do Himalaia: oxigênio vital
PREPARAÇÃO - Imagem dos primórdios da subida do Himalaia: oxigênio vital (Keystone/Getty Images)

Mas, xenônio? Seria imoral, e daí brotam as reações mercuriais de quem se sentiu ferido. A União Internacional das Associações de Alpinismo, de poder restrito, apenas consultivo, divulgou um comunicado alertando para os perigos do ruidoso fluido. Para autoridades do governo nepalês, “escalar em apenas quatro ou cinco dias vai contra os valores e normas tradicionais que nós, xerpas, respeitamos”. O diretor do departamento de turismo do Nepal também se pronunciou, dizendo que o uso do xenônio era “contra a moral da escalada”.

Há ainda um espesso nó: o xenônio, ao oferecer “milagres”, facilitaria o acesso ao Everest, ampliando o número de turistas e de aventureiros, na acepção pejorativa do termo. É briga atual, pelas filas infindáveis, pelo acúmulo de lixo. Em 2001, 182 pessoas chegaram ao fim da mítica trilha. No ano passado, foram 861. É muita gente. Não se trata de navegar contra os avanços da ciência, porque o xenônio tem benefícios, mas não convém pegar a estrada da desonestidade, nunca. “Há quem suba o Everest apenas pelo ego, sem amor ao lugar e seus habitantes”, diz Niclevicz. É isso.

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947

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