Chute no bom senso: o “enrolês” domina as transmissões de futebol
O uso de expressões complicadas e, muitas vezes, sem sentido ganha espaço, mas a estratégia apenas afasta os torcedores
Os professores de português, pelo menos os melhores, sempre afirmaram que a língua é viva, mas os novos narradores e comentaristas de futebol parecem dispostos a sufocá-la com um lero-lero incompreensível. Craque da seleção brasileira nos anos 1960 e 1970, Paulo Cezar Caju, hoje colunista da revista PLACAR, tem o hábito de colecionar frases ridículas e quase sempre sem sentido ditas por profissionais do mercado da bola. Basta dar uma espiada na lista preparada por Caju para notar que a enrolação costuma entrar em campo especialmente quando se trata de tática e esquemas de jogo. Veja esta: “O treinador precisa de um time automático com potência para espaçar o último terço e os corredores naturais da beirinha”. O quê? Eis outra aqui: “Nas trocas do 4-4-2 por um modelo clássico de linha de 5 e 4 na frente, é preciso ter amplitude e encorpar os volantes para o lado do campo e criar a opção do movimento corporal do 9”. Hã? Mais uma para fechar o rol de desatinos: “Com DNA ofensivo, o time tem compactação de ideias para agredir o adversário e fazer uma transição dinâmica, explorando o ponto de sustentação e a identidade do ataque”. Como assim?
Os exemplos apresentados acima são apenas uma pequena parte do “enrolês” que passou a dominar as transmissões de futebol. É um fenômeno disseminado e aparentemente sem controle: com o fim do monopólio da Globo, as partidas passaram a ser exibidas em diversas plataformas, seja no streaming, seja nas redes sociais ou nos canais por assinatura. O modelo levou ao surgimento de uma nova geração de narradores e comentaristas — mais vagas foram abertas, afinal — e a uma série de programas esportivos que dominam a TV e as plataformas de internet. Nesse cenário, os supostos “especialistas” chutam o bom senso e dão caneladas no quesito compreensão.
O fenômeno é recente, mas no passado alguns profissionais do ramo também escorregavam no “tatiquês”. O treinador Cláudio Coutinho, que comandou a seleção na Copa de 1978, foi pioneiro em defender a disciplina tática importada da Europa e ficou conhecido pela terminologia, até então inédita, “ponto futuro”, em que um passe é feito no espaço vazio, esperando a aproximação de quem vem de trás. Tite, técnico da seleção, é mestre em expressões esnobes. Seu dialeto próprio inclui tolices como “externo desequilibrante”, para se referir aos bons e velhos pontas, além da expressão “jogador terminal” — calma, não é o atleta que está com os dias contados, mas o centroavante que faz gols. A diferença é que essa suposta sofisticação agora está nas palavras daqueles que deveriam explicar o jogo — e não obscurecê-lo.
Nessa linha empolada, o futebol está indo na direção contrária à de outros segmentos. Nos últimos anos, a indústria financeira abandonou o “economês” para se aproximar de novos públicos e tornar suas mensagens mais compreensíveis. Hoje em dia, por exemplo, ninguém mais usa palavras pedantes como “emolumento” (felizmente substituída por “taxa”). No mundo jurídico, também há um movimento para facilitar a compreensão. A partir do escândalo do mensalão, o noticiário dos tribunais tornou-se onipresente e os comunicadores trataram de traduzir para o público o que os meandros legais queriam dizer. Nos dois casos, a imprensa — inclusive VEJA — teve papel vital para capturar o espírito do tempo e levar conteúdo denso com mais leveza para as novas gerações.
No futebol, os narradores e comentaristas resolveram complicar tudo. A estratégia até pode ser entendida como arrogância, mas às vezes é também truque para esconder falta de conhecimento. Em vez de levar informação a quem assiste ao jogo, os profissionais embananam-se com comentários que, a rigor, não significam coisa alguma. “Todo esporte traz com ele um número de expressões e conceitos”, afirma o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues. “O que está acontecendo agora é uma forma de mistificação: estão substituindo jargões já conhecidos por novos para falar apenas com os iniciados.” Nessas horas, é sempre bom recorrer à principal referência do país em locução esportiva. Em 2019, após um amistoso da seleção, Galvão pediu a Tite para parar de usar “palavras que não existem”. Sábio conselho.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801