Chega de pregar no deserto
A Copa no Catar tem evidentes problemas – mas é sempre bom deixar os preconceitos de lado para entender melhor o mundo
AL KHOR – Não há apenas um modo de enxergar o mundo, e por isso é conveniente antes olhar para a própria esquina e somente depois apontar o dedo para os outros. As mortes de operários na construção dos estádios do Catar foram sobejamente comprovadas – fala-se em milhares de pessoas, em sua maioria imigrantes indianos. Cabe lembrar, contudo, que pelo menos nove operários morreram em acidentes de trabalho nos canteiros de obras para a Copa de 2014, no Brasil. Não se trata, é claro, de relativizar o que não pode ser relativizado, as perdas de vidas são todas iguais, mas o paralelismo histórico é vital. No Catar e no Brasil houve pressa e sonhos de grandeza. Cabe prestar atenção, agora, no que disse o nepalês Rampriya Raya ao jornal Sunday Mirror ao relembrar da morte do filho, Sanjib, de 28 anos, que labutava desde a pedra fundamental no sítio onde subiu o Estádio Al Bayt, palco do jogo de abertura do Mundial de 2022 entre Catar e Equador. “É um insulto para a memória do meu filho e de outros imigrantes, o estádio foi construído com o sangue e o suor dos trabalhadores”, disse.
Rampriya seguirá protestando e chorando, desolado e desatendido. Estará ao lado dos voluntários da Anistia Internacional até que a FIFA aceite pagar a indenização pedida, em um valor total de 400 milhões de dólares – e que por ora não conseguiu eco. Disse Gianni Infantino, o presidente da entidade que manda no futebol, na véspera do pontapé inicial: “Depois do que nós, europeus, fizemos ao mundo nos últimos 3 000 anos, caberia pedir desculpas por mais 3 000 anos antes de darmos lições de moral”. Ele tem razão, ao menos nesse ponto – mas, insista-se, não se trata de passar a mão na cabeça das autoridades cataris, que têm um problema de direitos humanos que não pode ser jogado para debaixo do tapete mágico.
O comentário de Infantino convida a um outro raciocínio: a primeira Copa do Mundo no Oriente Médio, a primeira em novembro e dezembro, soa estranha, as sensações iniciais são esquisitas, mas convém deixar de lado o julgamento prévio, filho da estranheza. Haverá nos próximos 30 dias o inevitável choque para os ocidentais. E atire a primeira pedra quem, ao se aproximar do Al Bayt, não quis tirar fotos com os camelos postados à entrada da arena, na tarde de 20 de novembro, ou então não fez uma selfie com os homens vestidos com as dishdashas, as túnicas que cobrem o corpo todo, em geral brancas.
Chegar ao Al Bayt, vindo de Doha, em uma hora de estrada, significa avançar para dentro do deserto, na região de Al Khor – e, no meio do nada, dar com o colosso, como quem enxerga uma miragem ou então se depara com uma tenda de beduínos. E é isso mesmo, a arquitetura idealizada por um escritório do Líbano foi inspirada nas tendas, como se as arquibancadas fossem envelopadas por panos. O interior é luxuoso, com mármore (ah, mas no Itaquerão também tem mármore) e tecidos coloridos inspirados nos desenhos dos nômades que vagavam pelas areias até parar à margem do Golfo Pérsico para pescar e depois descobrir petróleo e gás. O Al Bayt tem capacidade para 60 000 pessoas. Tem teto retrátil. Depois da Copa será reduzido a 32 000 lugares e parte dele transformado em hotel. Custou 770 milhões de dólares. É suntuoso e bonito – e talvez seja inevitável lembrar que nele caiu o nepalês Sanjib.
A Copa começou, com a louvação da cultura catari na bonita festa de inauguração, antes do jogo – e com ela, agora e até 18 de dezembro, como retrato da civilização, estarão na ribalta todas as contradições da sociedade. Ou, parafraseando Caetano Veloso em Sampa, o que se vê no Catar do futebol é a força da grana que ergue e destrói coisas belas, como o Al Bayt – ou então, que ergue coisas bonitas a custo de desconstrução ética, porque havia pressão de tempo e muito, muito dinheiro envolvido.