Carta ao Leitor: Somos todos Vinicius Jr.
O atleta pode representar um ímã de transformação — o início do fim de atitudes racistas, por meio de condenações legais e outras punições

Poucas vezes, na história do esporte, um personagem de visibilidade internacional teve a coragem do atacante brasileiro Vinicius Jr., do Real Madrid e da seleção brasileira. No domingo 21, depois de ter sido chamado de “macaco” por torcedores do Valencia, na Espanha, ele foi às redes sociais denunciar o racismo de que fora vítima: “O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas. Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo. Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas”. Houve comoção global. O primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez revelou apoio ao jogador. O presidente Lula teve reação idêntica. Um dos mais tradicionais jornais esportivos, o Marca, cutucou muitos de seus leitores, atavicamente conservadores, e alertou na manchete: “Não basta não sermos racistas. É preciso ser antirracista”.
A postura valente de Vinicius Jr. é espantosa porque, ainda hoje, no século XXI, é difícil lutar contra a chaga do inaceitável preconceito atrelado à cor de pele — e é extraordinário vê-lo assumir a ponta de lança de um movimento necessário. Dá-se a dimensão do gesto do sorridente atleta de 22 anos com um rápido passeio histórico. De Pelé sempre se cobrou ativismo contra o racismo, como se fosse obrigado a ser rei também fora dos gramados. Ele sempre gostou de lembrar que, aos gritos estúpidos de torcedores do Boca Juniors, da Argentina, em 1962, em Buenos Aires — “los macaquitos de Brasil, los macaquitos de Brasil” —, respondia com gols, e apenas com gols. Michael Jordan, lenda viva do basquete, em 1990 foi publicamente cobrado por lideranças negras para que declarasse apoio à candidatura ao Senado do democrata Harvey Gantt, negro, em oposição a um republicano branco de ideias supremacistas. Jordan doou dinheiro para a campanha de Gantt — que seria derrotado —, mas jamais se pronunciou. Em nome da neutralidade ele diria: “Republicanos também compram tênis Nike”. Pelé e Jordan são filhos de seu tempo, e não é justo condená-los. Não ergueram bandeiras, mas ajudaram a quebrar a barreira que impedia o protagonismo negro em qualquer setor da sociedade, inclusive no esporte.
Nesse aspecto, o da louvável militância, porta-voz de um grito silenciado, Vinicius Jr. dá as mãos a um personagem gigante e incontornável, exceção à regra: Muhammad Ali, o maior pugilista de todos os tempos, que desferia socos com a frequência com que soltava opiniões políticas agudas, a um só tempo ícone dos ringues e da cultura dos anos 1960 e início dos 1970. O brasileiro, guardadas as devidas proporções, tem agora relevância de dimensão semelhante, multiplicada pelas redes sociais. Ele pode representar um ímã de transformação — o início do fim de atitudes racistas, por meio de condenações legais, afastamento dos estádios e outras punições. Somos todos Vinicius Jr.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843