Olimpíada de 2024: Alguém aí disse Paris?
O estádio Yves-du-Manoir tem uma história inigualável, palco dos Jogos de 1924, a final da Copa do Mundo de 1938 e uma tarde genial de Pelé
O tempo passa devagar, devagarinho, em Colombes, comuna ao norte de Paris – e, no entanto, lá se vão 100 anos. O estádio Yves-du-Manoir será sede das partidas de hóquei sobre a grama. Na partida inaugural, a Grã-Bretanha venceu a Espanha por 2 a 0. Ao redor, das janelas de prédios populares, os moradores tentam alcançar algum tico do campo. Pelas grades, olhares curiosos tentam roubar alguma imagem da instalação. Numa quadra de basquete, meninos enterram as bolas como se mais nada houvesse.
O ambiente calmo, de cafés de esquina com os donos batendo papo em mesas do lado de fora, apesar da chuva, é o avesso do frenesi que tomou conta de Paris na cerimônia de abertura que atravessou a história do país. O Yves-du-Manoir – batizado em homenagem a um antigo jogador de rúgbi – é uma fenda temporal, e não há aqui nenhum exercício de imaginação. O lugar foi palco central dos Jogos Olímpicos de 1924, e desde então costurou capítulos indeléveis do esporte, até ser engolido pela grandeza do Parc des Princes.
No início, era um hipódromo, inaugurado em 1907. Em 1920 foi concedido ao Racing Club de France, time de rúgbi de 15. E então, na olimpíada de um século atrás, tornou-se a principal arena do torneio, tempo em que a expressão arena era destinada apenas aos circos romanos da antiguidade. A lista de eventos do Stade de Colombes, com arquibancada para 40 000 pessoas, é de tirar o fôlego. Foi terreno do ouro de Eric Liddell nos 400 metros e o de Harold Abrahams nos 100 metros, os atletas britânicos do filme Carruagens de Fogo. Acompanhou a chegada das corridas do finlandês Paavo Nurmi, que venceu numa mesma tarde os 1 500 metros e os 5 000 metros. Foi ali que a seleção uruguaia de futebol inventou a chamada “volta olímpica”, ao vencer os suíços por 3 a 0.
Era apenas o início da estrada. Em 1938, o Stade des Colombes viu a vitória da Itália contra a Hungria na final da Copa do Mundo. Durante a ocupação nazista na França, na Segunda Guerra Mundial, serviu de campo de triagem para os detidos depois encaminhados para os campos de trabalho forçado ou de concentração – e, em alguns casos, liberados. O filósofo alemão Walter Benjamin passou por lá, em setembro de 1939.
Há conexões sentimentais com o Brasil, e elas são grandiosas. Era um domingo, 28 de abril de 1963. A seleção venceu os franceses por 3 a 2, com três gols de Pelé. No dia seguinte, os jornais estamparam o resultado da partida com objetividade inigualável: “França 2 x 3 Pelé”. Ao sair de campo, o Rei foi modesto: “Acho que contribui para a nossa vitória”. Ela voltaria em 1971, pelo Santos, cercado por jornalistas, adulado pelos torcedores, incensado como um deus. Tinha a cara assustada de tanto assédio. A seu lado, a convite de uma empresa francesa, Brigitte Bardot, a estrela de E Deus Criou a Mulher…
Não há dúvida. A timidez do Yves-du-Manoir, apartado do centro de Paris, não pode esconder as camadas de glórias de um recinto com mais relevância do que todas as outras instalações esportivas de Paris em 2024. É emocionante vê-lo de perto.