O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Fogo foguinho
Ninguém esconde o fuzuê provocado com a facada desferida pelo alferes Felício Coelho de Mendonça, oficial do Corpo de Dragões de Vila Rica, em Minas Gerais, contra sua mulher, Domitila de Castro Canto e Melo — por ciúme, talvez, ou por algum interesse pecuniário. A moça se recuperou da tragédia pessoal, briga pela guarda dos filhos, e decidiu tocar a vida nova nos arredores de São Paulo. Ela é irmã do major Francisco de Castro Canto e Melo, que acompanhou o príncipe regente a São Paulo. Dom Pedro, que adora uma saia, ficou todo fogo foguinho ao encontrar Domitila, de 24 anos, pela primeira vez — há quem os tenha visto juntos, juntinhos no fim de agosto, dias antes de a trupe libertadora chegar às margens do riacho do Ipiranga. Cometeram pecado? É o que dizem. Pode dar confusão, mas o Brasil agora só quer saber da independência. Titília, como alguém ouviu o príncipe se referir à nova amiga, é personagem destinada à sombra.
Heroína baiana
Uma marisqueira da Ilha de Itaparica, na Bahia, tem dado o que falar. Alta, corpulenta, descendente de negros escravizados vindos do Sudão, Maria Filipa de Oliveira criou um insólito recurso para atacar as forças portuguesas. Ela tem convencido as mulheres mais bonitas a passear pela praia e, desse modo, atrair os soldados, que são atacados e surrados. A contabilidade: mais de quarenta embarcações lusitanas queimadas.
Os métodos do padre
Aos 16 anos, em 1783, ele compôs sua primeira peça musical, Tota Pulchra Es Maria. Renomado professor, no ano passado ele apresentou um Laudamus que lembra as óperas de Rossini, sucesso no Rio de Janeiro. Tem mais: acabou de escrever O Compêndio de Música e Método para Pianoforte. Mas o que tem feito do padre José Mauricio Nunes Garcia um personagem inescapável em temporada tão quente, ao ritmo da independência, é sua proximidade com dom Pedro, a quem ajuda, como exímio mestre, nas (boas) composições do príncipe regente. Não era para menos: José Maurício, um protegido de dom João VI, é o fundador de um procurado curso de música na Rua das Marrecas, no Rio.
O rei não está nu
A primeira visita de um rei do Reino Unido e Hanover à Escócia em dois séculos, em agosto passado, tem dado pano para manga. Jorge IV nunca escondeu seu gosto por banquetes pantagruélicos e o álcool em quantidades abissais. Sabe-se ter mais de 100 quilos. Mas o que chamou mesmo a atenção, em Edimburgo, foram as vestes do monarca, em homenagem aos anfitriões, com as rechonchudas pernas à mostra. Ele ostentava um saiote quadriculado com pregas nas costas a que chamam de kilt — tartã, em bom português. Foi um alvoroço. O tartã é símbolo de ostentação da aristocracia e de uma classe média emergente, mas tem sido muito malvisto nas Terras Altas por ter relação com o fracassado Levante Jacobita, em 1745, liderado por Carlos Eduardo Stuart, fervoroso adepto do estilo. Jorge IV pode ter inventado moda.
Soldado Medeiros
“Mulheres fiam, tecem e bordam, não vão à guerra”, disse o pai de Maria Quitéria de Jesus, uma baiana de Feira de Santana, ao ouvir dele o pedido de autorização para lutar contra as forças portuguesas. Ela deu de ombros e seguiu com seus planos. Quitéria se apresentou como voluntária agora em setembro nas batalhas pela libertação de Portugal que brotaram no Recôncavo Baiano. É destemida e criativa. Vestida de homem dos pés à cabeça, inventou um pseudônimo — “soldado Medeiros” — e foi à luta. Danada a mulher já balzaquiana, de 30 anos. Um dia, quem sabe, dada sua histórica valentia, pode até virar nome de rua. Merece.
A megera do Ramalhão
Confinada no Palácio do Ramalhão, nas cercanias de Lisboa, Carlota Joaquina de Bourbon, ex-rainha consorte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, mulher de dom João VI e mãe de dom Pedro, parece mesmo estar disposta a cair no ostracismo definitivo. Pudera: ao retornar para a Europa, no ano passado, ela disse que ficaria cega por ter vivido “treze anos no escuro, só vendo negros e mulatos”. Não queria pisar as ruas de Lisboa levando na sola do calçado terra do Brasil. A revolta tem na verdade um fundo de mágoa: suas pretensões de se tornar regente das antigas colônias espanholas na América foram frustradas pelo marido. Depois disso, foi só humilhação e arrivismo.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805