Radar: o desconforto com a relação entre Dom Pedro e Chalaça
E mais: o comércio ufanista, a primeira bandeira do Brasil independente e o racha entre os maçons

O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.

Um amigo incômodo…
Causa algum desconforto a presença muito próxima a dom Pedro de um amigo de farras da adolescência do príncipe regente. Seu nome: Francisco Gomes. O apelido: Chalaça. Ex-barbeiro, ex-sangrador e ex-dentista, ganhou simpatia da família real, inclusive de dom João VI e Carlota Joaquina, ao trabalhar como reposteiro. É ele quem tratava de descobrir o trono do rei e de colocar almofadas sob os joelhos do monarca.
…De passado duvidoso
Contudo, há quem olhe feio para a história pregressa do chistoso janota. Ele foi amancebado com uma certa Maricota Corneta, dona de uma hospedagem de péssima fama no Rio de Janeiro. Há alguns anos, Chalaça e dona Eugênia de Castro, dama do Paço, foram surpreendidos nus e expulsos do palácio. Teme-se que o amigão do príncipe esteja organizando um “gabinete secreto”. Não por acaso, ele acompanhou dom Pedro até São Paulo.
Imperador?
José Clemente Pereira, presidente do Senado da Câmara da Cidade do Rio de Janeiro, o arquiteto do “Fico”, tem um plano: quer propor a câmaras de outras cidades que dom Pedro seja aclamado imperador em outubro e jure uma Carta a ser elaborada por uma Assembleia Constituinte.
Triste Bahia…
Em 23 de agosto passado, a princesa regente, dona Leopoldina, recebeu uma delegação de senhoras da Bahia. O objetivo: entregar-lhe um manifesto com 186 assinaturas. No documento, as signatárias reconhecem a relevância de Leopoldina na decisão de o príncipe ter ficado no Brasil. Os baianos lutam contra o Exército português na província desde fevereiro.
…Ó quão dessemelhante
A violência no Recôncavo não para de crescer e tem uma mártir: em 19 de fevereiro, Joana Angélica de Jesus, abadessa do convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, em Salvador, foi assassinada por soldados portugueses que invadiram o local.
Racha entre os maçons
Discute-se no Grande Oriente, centro da direção geral da maçonaria no Brasil, a expulsão do frei Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio. Amigo próximo de José Bonifácio, ele defende uma monarquia constitucional. A reunião de 9 de setembro foi quente.
Dom Pedro escondidinho
O Apostolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros da Santa Cruz é uma sociedade secreta criada em junho pelo ministro José Bonifácio nos moldes da maçonaria. Diz-se que o próprio dom Pedro participou escondido da reunião inaugural, disfarçado e com um codinome: Rômulo.
Comércio ufanista
Novidade em São Paulo: vendem-se fitas cor de ouro com a legenda “Independência ou Morte”, a 12 vinténs cada uma em lojas de fazendas.
Pendão da esperança
O pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret está dando os últimos retoques no que pode vir a ser a primeira bandeira do Brasil independente. O losango é inspirado na maçonaria francesa e nas bandeiras napoleônicas. E as cores? O verde primavera é herdado da Casa dos Bragança. O amarelo é homenagem aos Habsburgo-Lorena, da família da princesa regente Maria Leopoldina.

Já raiou a liberdade
Um celebrado e poliglota vendedor de livros da Rua da Alfândega, no Rio, Evaristo da Veiga, tem pronta a letra do que se imagina transformar em Hino Constitucional Brasileiro. Veiga pôs o ponto-final no trabalho em 16 de agosto. Um trecho:
“Já podeis da pátria filhos / ver contente a mãe gentil / Já raiou a liberdade / no horizonte do Brasil. / Brava gente brasileira, / longe vá temor servil / ou ficar a pátria livre / ou morrer pelo Brasil”.

Tirem as crianças da sala
O terceiro volume da antologia de contos para crianças dos irmãos Grimm — Wilhelm e Jacob — tem produzido cizânia em família. Diante das críticas de excessiva violência das histórias, Wilhelm parece disposto a reescrevê-las. Jacob bate o pé. Ele acha que qualquer correção seria desrespeito ao folclore original. A Alemanha está em polvorosa.
Brasil com Z
O jornalista Hipólito da Costa, residente em Londres, discorda do uso do gentílico “brasileiro” — para ele, brasileiros são os portugueses e estrangeiros residentes no país. O correto, segundo da Costa, para os nascidos no Brasil, seria “brasiliense”. Não por acaso, o jornal que ele dirige zelosamente a partir da Inglaterra é chamado de Correio Braziliense, com “z”.
Crueldade, não!
Foi sancionada na surdina, na Inglaterra, uma lei proposta pelo parlamentar irlandês Richard Martin para prevenir o tratamento cruel e impróprio de bovinos. É considerada, desde já, a primeira lei de proteção aos animais.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805