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O encontro libertador entre San Martín e Bolívar no Equador

A diplomacia e o poderio militar são decisivos, é claro, mas o motor do sonho da independência dos países vizinhos é o livre-comércio

Por Redação Atualizado em 4 jun 2024, 12h20 - Publicado em 3 set 2022, 07h00

O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.

Não há dúvida de que as notícias vindas de São Paulo no último dia 7 são animadoras para o Brasil, mas convém botar as barbas de molho. A julgar pelo que se tem visto entre os vizinhos do Brasil, a liberdade não será conquistada de forma pacífica e tranquila. O reino de Castela não apenas recusou as proclamações de independência de suas colônias nas Américas como vem usando suas tropas para tentar reverter o processo. Foi assim, por exemplo, na Venezuela e no Vice-Reino da Nova Espanha, que se declararam independentes em 1810, mas tiveram de lutar até o ano passado para conseguir, de fato, a rendição definitiva dos espanhóis — a Venezuela depois da Batalha de Carabobo, em junho; a Nova Espanha com a assinatura do Plano de Iguala, apenas no início deste setembro histórico.

Há quem diga que o sangue dos corpos caídos são as veias abertas a tingir de vermelho os campos do continente. Se o Vice-Reino de Nova Granada atualmente é conhecido como Grã-Colômbia e se Guayaquil já se considera uma Província Livre desde outubro de 1820, só agora Quito parece ter se livrado dos grilhões europeus, quase treze anos depois de declarar-se independente — o movimento iniciado em agosto de 1809 foi rapidamente reprimido pelos Exércitos reais. Depois da terrível Batalha de Pichincha, concluída no último dia 24 de maio, as forças leais à Espanha não têm mais como reagir. Sob o comando do general Antonio José de Sucre, os separatistas vinham gestando o confronto desde o início do ano.

Sucre reuniu veteranos de outras escaramuças e soldados recém-alistados em seu Batalhão Yagauchi. Boa parte do sucesso da empreitada deveu-se à chegada de tropas enviadas por Simón Bolívar, natural de Caracas, além de voluntários britânicos, franceses e irlandeses. No total, quase 3 000 homens chegaram ao sopé do vulcão Pichincha. Melchor Aymerich, que exercia o domínio colonial em Quito, tentou impedir que a montanha fosse ocupada. A região, com matas muito densas, exigiu enormes esforços de batalha. Quando parecia que o destacamento real ganharia uma vantagem definitiva, ao ocupar partes mais altas do vulcão, um grupo de soldados britânicos (o Batalhão Albión) obrigou os realistas a se refugiarem no forte de El Panecillo. Aymerich aceitou rapidamente a rendição proposta por um representante de Sucre e assinou a capitulação no dia 25 de maio — ainda assim, a Batalha de Pichincha deixou cerca de 200 mortos entre os independentistas e 400 entre os leais ao rei, além de 330 feridos.

A vitória é uma conquista decisiva para os autoproclamados “Libertadores da América”. O grupo, que luta pela emancipação do continente, inclui personagens como o chileno Bernardo O’Higgins, que conquistou a independência da Capitania Geral do Chile em 1818, com a ajuda do almirante escocês Thomas Cochrane (leia na pág. 18); o venezuelano José Antonio Anzoátegui; além, insista-se, de Sucre e Bolívar. Esse último, aliás, manteve recentemente uma reunião secreta com José San Martín (outro que sonha em pôr seu nome nas enciclopédias). Em 26 de julho, Bolívar e San Martín estiveram em Guayaquil num encontro destinado a selar uma ideia: unificar as colônias em uma só nação.

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Do ponto de vista político, a maior inspiração dos libertadores é o chamado Iluminismo, movimento de mãos dadas com a Revolução Francesa, de 1789. Do lado de cá do Oceano Atlântico, seus ideais de liberdade e igualdade, contra a tirania, se traduzem, por exemplo, na luta contra as péssimas condições de trabalho de índios, escravos e mestiços. Para chegar lá, será preciso combater os muitos focos de resistência em favor do rei. Mas a tentativa de unificar esforços contra a Coroa espanhola expõe o que talvez seja o lado mais relevante do atual movimento separatista. Em Buenos Aires, onde San Martín (ex-militar espanhol que se insurgiu contra a matriz em 1812 e participou também do movimento independentista chileno) luta cotidianamente, a Primeira Junta foi nomeada em 25 de maio de 1810. A independência foi proclamada em julho de 1816, mas analistas garantem que a rendição da Espanha deve demorar ainda anos, senão décadas. Ao mesmo tempo, inúmeras mudanças já foram postas em prática — com a abertura dos portos e a liberação do comércio com os estrangeiros.

Ou seja, tão ou mais relevante do que vencer as batalhas diplomáticas e militares é atentar-se aos aspectos econômicos do momento que estamos vivendo. Em outras palavras, seguir o dinheiro. E, nesse ponto, é consenso que França e, sobretudo, Inglaterra, ocuparam o espaço que, por mais de três séculos, foi de Espanha e Portugal. Desde a ascensão de Napoleão só faz crescer a demanda dos europeus pela expansão de seus mercados consumidores. Foi justamente para evitar o chamado Bloqueio Continental que o imperador francês invadiu a Espanha, desestabilizando fortemente a autoridade do governo sobre as colônias. O fim do monopólio comercial na região também foi amplamente celebrado por ingleses e estadunidenses.

Há um bom tempo o Reino da Grã-Bretanha e Irlanda vem fazendo valer seus interesses na América com base na diplomacia econômica. O que ocorreu em Buenos Aires é elucidativo. Três dias depois da constituição da junta revolucionária, em maio de 1810, começaram a ser levantadas proibições de comércio com estrangeiros. Uma semana mais tarde, os impostos sobre as vendas de couro e sebo para o exterior caíram de 50% para 7,5%. E após mais um mês já se podia exportar ouro e prata em moedas — e, claro, elas passaram a circular em Londres sem inconvenientes. A partir de 1813, os comerciantes estrangeiros ficaram desobrigados de vender suas mercadorias por meio de negociantes nativos. Na prática, entrou em vigor o chamado livre-comércio, o que vem prejudicando fortemente a produção dos tecelões locais.

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A situação do Brasil é semelhante. Até as pedras do calçamento do Rio de Janeiro sabem que a chegada da família real, em 1808, e a decisão de abrir os portos aos navios estrangeiros foram iniciativas 100% alinhadas com a Coroa britânica — isso para não dizer que os lusos eram apenas um joguete nas mãos de George III. Desde a chegada dos primeiros espanhóis e portugueses à América o que sempre se viu foi a expropriação dos recursos naturais (ouro e prata, onde quer que eles pudessem ser encontrados, cobre, pedras preciosas, madeira) e também do produto da agricultura (açúcar e café em primeiro lugar).

Mais recentemente, graças à expansão industrial inglesa, os tecidos produzidos nos arredores de Londres têm sido usados como moeda de troca — sempre com o objetivo de continuar levando para o Velho Continente as riquezas do Novo. É amplamente sabido que os ingleses já controlam, há mais de uma década, boa parte do comércio legal entre a Espanha e suas colônias (e ex-colônias), sem falar no famigerado contrabando, que caminha de mãos dadas com o tráfico de escravos. O que nos leva à grande questão que se instala para o futuro: seria a independência do Brasil e de seus vizinhos um caminho para mais liberdade e autodeterminação? Ou corremos o risco de trocar de “senhor”, presos aos interesses econômicos de ingleses, franceses ou quem mais tiver o poder e o dinheiro? Só o tempo dirá.

Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805

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