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As revelações de Spix e Martius após três anos na floresta brasileira

A dupla de naturalistas bávaros, de volta à Europa, mostra ao mundo os detalhes da flora, da fauna e dos indígenas do país

Por Da Redação Atualizado em 4 jun 2024, 12h19 - Publicado em 3 set 2022, 07h00

O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.

As notícias que chegam da Alemanha revelam que o Brasil, mais do que nunca, está no centro das atenções dos europeus. Além das preocupações a respeito do preço do café exportado pelo país, um evento trágico comoveu a comunidade científica do Velho Continente. De acordo com reportagem publicada no Münchener Politische Zeitung, um dos principais periódicos de Munique, no último 20 de maio a indígena Isabela, da tribo amazônica dos miranhas, morreu naquela cidade alemã por “inflação crônica geral das entranhas do abdome”. Isabela, assim batizada pelos naturalistas alemães Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, nasceu e cresceu no Brasil e foi levada por eles, quando tinha entre 12 e 14 anos, para viver na Europa. O triste destino de Miranha, nome pelo qual ficou conhecida, põe fim à tentativa — questionável sob diversos aspectos, ressalte-se — de incorporar os hábitos e costumes europeus a indivíduos que cresceram no coração da floresta brasileira, chamados pelos expedicionários de “selvagens”. Miranha não foi a única a perecer em solo europeu. Pouco antes, em junho de 1820, seu companheiro de viagem, Johannes Juri, do grupo comá-tapuia, perdeu a vida por complicações decorrentes de uma pneumonia. Juri também tinha entre 12 e 14 anos.

Spix e Martius mantêm longo e proveitoso relacionamento com o Brasil. Durante três anos, entre 1817 e 1820, os dois naturalistas percorreram estimados 14 000 quilômetros do território brasileiro, no lombo de mulas, em canoas ou mesmo a pé. Eles passaram pelas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão e Grão-Pará sempre com o espírito aberto para observar tudo o que viam pela frente. Na jornada, estudaram e recolherem amostras da fauna e flora do país. Para não deixar passar nada, escreveram meticulosas cartas, com riqueza impressionante de detalhes, que eram enviadas regularmente ao rei Maximiliano I José da Baviera. Mais do que isso: como exímio desenhista e aquarelista, Martius reproduziu a exuberância da floresta virgem brasileira e dos animais que a habitam. Algumas dessas obras rivalizam, em intensidade e beleza, com aquelas produzidas por pintores como o francês Jean-Baptiste Debret, que também se debruçou sobre as riquezas nacionais. Sorte das gerações vindouras, que poderão deliciar-se no futuro com o legado deixado por artistas como esses.

EXUBERÂNCIA - Pintura feita por Martius: riqueza impressionante de detalhes revela as belezas do país tropical -
EXUBERÂNCIA - Pintura feita por Martius: riqueza impressionante de detalhes revela as belezas do país tropical – (Carl Friedrich Phillipp Martius/Coleção Brasiliana Itaú Cultural/.)

Martius é um homem de múltiplas habilidades, botânico, antropólogo e pintor, desde cedo se encantou com o que lia e ouvia sobre o Brasil. Conhecer as entranhas daquele terra distante, apontada por seus pares cientistas como o paraíso na Terra para botânicos, sempre foi um objetivo a ser perseguido. Em 1814, aproximou-se do futuro parceiro de expedições, o naturalista Johann Spix, que também nutria especial interesse pela vida brasileira e que já era reconhecido como um gênio no campo da zoologia. Três anos depois, embarcaram para o Brasil para iniciar aquela que seria a maior aventura de suas vidas.

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Os dois naturalistas chegaram ao Rio de Janeiro em 1817, como parte da expedição científica austro-bávara organizada por ocasião do casamento da princesa Leopoldina, arquiduquesa de Áustria, com o príncipe herdeiro do império português dom Pedro. Por razões não completamente esclarecidas, os dois logo se separaram dos colegas austríacos e seguiram juntos para dar prosseguimento à missão. A ideia inicial era passar um ano em solo brasileiro recolhendo e analisando animais e plantas para a produção de ensaios científicos sobre o país. Aqui, contudo, descobriram que isso não seria suficiente. Para desbravar o que aquela “terra mágica” — eis a linda definição feita por eles — tinha a oferecer aos que se propunham a desvendá-la, exigia-se inevitavelmente a permanência por períodos mais longos. Acabaram ficando três anos, e ainda assim retornaram à Europa apenas porque foram pressionados a voltar por colegas cientistas ansiosos para conhecer o que de tão extraordinário haviam descoberto.

No Brasil, aproximaram-se das autoridades locais, tornaram-se figuras conhecidas das comunidades indígenas e contaram com a colaboração inestimável da própria população nos deslocamentos e ocasiões em que faziam imersões no coração da floresta. VEJA conversou com um desses auxiliares, que assegurou que os dois alemães se apaixonaram pelo país. Tanto é assim que relutavam em voltar à Europa. Parte do acervo que foi recolhido ao longo dos três anos da expedição brasileira — plantas exóticas, diamantes e até animais — foi despachada para o Velho Continente antes da viagem de retorno dos próprios naturalistas. Ao todo, estima-se que enviaram principalmente para a Alemanha 9 000 espécies de plantas e animais, incluindo mamíferos, aves e anfíbios, em sua maioria vivos. O conjunto inestimável deverá abastecer museus e zoológicos espalhados pela Europa. Além disso, dará origem a um livro de relatos de viagem, que será publicado em breve.

CALLITHRIX AMICTA - Primata típico: 9 000 espécies de plantas e animais levadas para a Europa -
CALLITHRIX AMICTA - Primata típico: 9 000 espécies de plantas e animais levadas para a Europa – (Coleção Brasiliana do Itaú Cultural/.)
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Spix e Martius deixaram o Porto de Belém, no Pará, para embarcar no dia 14 de junho de 1820 na galera portuguesa Nova Amazona, um navio de cargas e passageiros que tinha Lisboa como destino. Além do monumental acervo, tinham como companhia quatro indígenas brasileiros. Martius revelou mais tarde como um deles acabaria se juntando ao grupo. Dias antes da viagem, o capataz de uma fazenda na região de Japurá, no Amazonas, apresentou o naturalista a um grupo de indígenas e autorizou que escolhesse um jovem para ser levado ao exterior com a missão supostamente nobre de “educá-lo para a humanidade europeia”. Martius selecionou Juri, um rapaz que não tinha mais do que 14 anos.

O garoto Juri e a garota Miranha sobreviveram à jornada transoceânica, mas os outros dois indígenas brasileiros que embarcaram no Nova Amazona — um deles com estimados 8 anos — morreram no meio do caminho, supostamente por problemas hepáticos, embora VEJA não tenha conseguido confirmar essa informação. A viagem de volta na moderna embarcação durou menos de um mês, e uma multidão acotovelou-se no Porto de Lisboa para ver de perto as relíquias que Spix e Martius tinham trazido do Novo Mundo. Como não poderia deixar de ser, Juri e Miranha atraíam a maioria dos olhares. Tímidos, arredios e assustados, eles não correspondiam às investidas dos curiosos.

CEBUS MACROCEPHALUS - Mamífero: eterno fascínio dos viajantes estrangeiros no Brasil -
CEBUS MACROCEPHALUS - Mamífero: eterno fascínio dos viajantes estrangeiros no Brasil – (Coleção Brasiliana do Itaú Cultural/.)
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Os dois naturalistas bávaros e os indígenas sobreviventes permaneceram apenas dois meses na capital lusitana, tempo suficiente para que cuidassem de trâmites burocráticos. Em outubro, seguiram viagem para Munique, conduzindo suas carruagens pela tradicional rota Madri-Lyon-Estrasburgo. Não é difícil imaginar as dificuldades enfrentadas por Juri e Miranha. Sem dominar outras línguas que não as suas próprias e desconhecedores da cultura europeia, certamente sofreram para se adaptar à nova vida. Ademais, Juri e Miranha eram de etnias rivais, inclusive com histórico de guerras entre si, o que talvez tenha contribuído para aumentar a angústia que viveram em território europeu.

A peculiar trupe chegou a Munique em 8 de dezembro de 1820, quando o rigoroso inverno alemão começava a mostrar as suas garras. Segundo relatos, todos chegaram debilitados, mas a cidade os recebeu calorosamente. Para Spix e Martius, aquele momento histórico representou o auge de sua glória. Eles eram os heróis que haviam conquistado o Novo Mundo e, para além disso, trouxeram consigo os símbolos máximos de sua aventura — os dois jovens e exóticos, ao menos para os olhares europeus, indígenas brasileiros. Todos permaneceram hospedados no Palácio Real, local em que os diversos cientistas designados pela corte começaram o trabalho de doutrinação dos convidados ilustres.

A investida, no entanto, não deu certo. Juri e Miranha jamais foram convertidos. Provavelmente infelizes e expostos às chagas europeias, não demorou para que adoecessem e chegassem ao seu triste destino. Para o bem ou para o mal, a aventura brasileira de Spix e Martius jamais será esquecida.

Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805

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