As extraordinárias revelações da Pedra da Roseta
Depois de décadas de pesquisas, finalmente um pesquisador francês descobre o enigma dos hieróglifos egípcios
O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
No próximo 27 de setembro, o filólogo francês Jean-François Champollion, um prodígio de apenas 31 anos, apresentará, na Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, em Paris, um achado que provavelmente mudará para sempre a compreensão que temos a respeito da cultura egípcia. Champollion passou as duas últimas décadas — desde a flor de seus 11 anos, portanto — estudando códigos e sinais cravados na enigmática Pedra de Roseta, um pedaço de granito com pouco mais do que 1 metro de altura e meio metro de largura encontrado em 1799 pelas tropas de Napoleão Bonaparte nos arredores do Porto de Roseta, no Egito. Do alto de seus dois milênios, o rochedo intriga cientistas como poucos objetos na história foram capazes de fazer, mas agora seu mistério parece ter chegado ao fim. Champollion alcançou um feito considerado até então intransponível: ele decifrou os hieróglifos entalhados no rochedo, escancarando as portas que ocultam os segredos do Egito antigo.
VEJA teve acesso aos documentos que serão revelados nos próximos dias por Champollion. O material é extraordinário. A Pedra de Roseta foi esculpida em 196 a.C., quando o Egito era controlado por gregos e o mundo estava sob a égide da dinastia ptolomaica. Durante anos, Champollion analisou obsessivamente, de seu modesto escritório na Rua Mazarine, em Paris, reproduções em papel que circulavam entre o corpo científico da França, até enfim descobrir que os hieróglifos são, em realidade, uma escrita fonética — ou seja, seus símbolos representam mais de um som. “A escrita hieroglífica é um sistema completo, uma escrita figurativa, simbólica e fonética em um mesmo texto, em uma mesma frase e, devo dizer, em uma mesma palavra”, escreveu Champollion no minucioso relatório que será apresentado ao mundo em breve.
De acordo com fontes parisienses, o filólogo correu em êxtase ao escritório do irmão mais velho, Jacques-Joseph, assim que decifrou o que está gravado na rocha egípcia. “Desvendei!”, teria gritado ele, para em seguida desmaiar diante da notável revelação, segundo a versão — um tanto fantasiosa, diga-se — corrente nas ruas de Paris. Afinal, o que escondem os signos aparentemente impenetráveis dessa lápide de basalto preto? A pedra traz a mesma mensagem em três escritas distintas e, ao comparar o egípcio antigo com o demótico, uma de suas variantes, e o grego antigo, Champollion desvendou o segredo milenar. Ele é, na verdade, um decreto promulgado pelo faraó Ptolemeu V Epifânio que restabelece o domínio dos reis ptolemaicos sobre o Egito. Roseta também expressa algumas concessões políticas do faraó aos seus sacerdotes e registra informações cotidianas, como uma inundação no vale do Rio Nilo.
A Pedra de Roseta parece ser um daqueles casos raros nos quais uma inscrição não é relevante pelo que diz, mas como diz. O decreto, afinal, consiste em uma mensagem de rotina sem grandes revelações — especulava-se que poderia trazer alguma informação nova sobre as magníficas pirâmides do Egito, mas não há nenhum registro a esse respeito. Ainda assim, a descoberta de Champollion é monumental. Historiadores consultados por VEJA acreditam que, ao decifrar os códigos do rochedo, o cientista francês dará a largada para uma nova era de pesquisas sobre a civilização egípcia, à medida que será possível, a partir de sua tradução, compreender o real significado das inscrições pictográficas antigas, como são também chamados os agora famosos hieróglifos.
A decodificação deverá acentuar uma velha rivalidade entre ingleses e franceses. Antes de Jean-François Champollion, o médico e físico britânico Thomas Young deu notável contribuição para o deciframento de Roseta. Após traduzir o grego antigo inscrito na pedra, Young indentificou os fonemas representados por alguns glifos, desvendou caracteres e revelou como era formado o plural das palavras. O trabalho certamente encurtou caminhos e ajudou Champollion a avançar em suas descobertas. Contudo, os louros para a posteridade deverão ficar — mesmo sob protesto dos ingleses, que defendem a originalidade dos estudos de seu conterrâneo — com o francês, que teve o mérito de desvendar por completo a intrincada charada e provar que a escrita hieroglífica está intimamente ligada à estética da arquitetura. Graças a ele, o Egito antigo não será mais um enigma indecifrável, mas uma ponte para fantásticas descobertas, agora e no futuro.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805