Lançado em novembro de 2016, o primeiro trailer do novo A Bela e a Fera, com a britânica Emma Watson à frente do elenco, chegou batendo recorde. Em 24 horas, o vídeo amealhou 127 milhões de visualizações e se tornou o trailer mais visto da história no período de um dia. A partir daí, cada novo detalhe sobre o filme passou a mobilizar as redes sociais mal pingava ali, e analistas passaram a projetar uma cifra milionária para a bilheteria de estreia do longa – só no circuito americano, algo como 120 milhões de dólares no primeiro fim de semana. O que move o público é mais que o hiato de 26 anos entre as duas produções da Disney, a animação e o live action. Criada há quase trezentos anos, A Bela e a Fera é uma história que mescla elementos realistas e signos situados a meio caminho entre a psicanálise e a mitologia, o que abre a história a uma possibilidade infinita de leituras – e lhe dá força.
A primeira versão da fábula, ao que se sabe, foi escrita pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, conhecida como Madame de Villeneuve, e lançada como um romance para adultos, em 1740. Com cerca de duzentas páginas, traz mais tramas – e milongas – que a história hoje difundida. Bela tem seis irmãos e cinco irmãs, todas invejosas, e uma ascendência ao mesmo tempo régia e mágica. O romance não acaba com a transformação da Fera e seu enlace com Bela: começa aí a chatíssima preleção de uma fada que, como num melodrama, aparece do nada, dizendo ser tia da mocinha. Ela descreve uma arenga no mundo das feiticeiras e revela a todos a genealogia da mocinha, tornando-a digna de se unir a um membro da família real – em vez do aristocrata esnobe Gaston, da Disney, o obstáculo que Bela enfrenta para se unir à Fera, aqui, é a sogra, uma rainha que não aceita plebeias na família.
Dezesseis anos depois desse lançamento, uma outra francesa teve a sábia ideia de condensar a história em um conto para crianças e professores. Foi a versão reduzida de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont que fez de A Bela e a Fera um conto de fadas e ajudou a popularizá-la. A chamada Madame de Beaumont enxugou tudo, a começar pela família da protagonista. Dos seis filhos e seis filhas que possuía no enredo original, a prole do pai de Bela cai pela metade: três filhos e três filhas. E nada de árvore genealógica amalucada, com rei e fada como verdadeiros pais. Ela é mesmo filha de um homem que trocou a cidade pelo campo, onde leva uma vida simples e onde promete a ela, na volta de uma viagem, uma rosa de presente. É aí, assim como na versão original, que a Fera entra na história. O pai se perde na floresta, vai bater no castelo do monstro, onde encontra comida e abrigo, e na saída arranca uma rosa do jardim, irritando a Fera, que o põe contra a parede: ou morre para pagar pelo erro de roubá-la ou traz um filho para se sacrificar em seu lugar, tarefa a que Bela, por se sentir culpada e por ser tão boazinha, irá se oferecer.
Levada ao castelo para morrer no lugar do pai, passa um tempo sozinha com a Fera, período em que se aproxima e se encanta pelo algoz – há quem enxergue aí a Síndrome de Estocolmo, quando o refém passa a simpatizar com o carrasco – e que no conto de Madame de Beaumont dura algumas poucas páginas, ufa. Aqui, a fábula termina logo que a Fera volta a ser um rapagão daqueles.
É uma versão mais redonda e sem frases derramadas como as que Madame de Villeneuve certamente escreveu para as leitoras em quem queria incutir a importância do amor – na versão original, os verdadeiros pais de Bela se casam na Ilha Bem-Aventurada, lugar onde todos têm liberdade para escolher com quem querem subir ao altar, uma crítica ao sistema de casamentos então vigente, em que meninas tinham seu destino decidido ainda cedo, em geral pelos pais. “Escravos do prazer de se amarem e de expressarem mutuamente esse amor, haviam se esquecido totalmente de suas responsabilidades como soberanos”, descreve a autora a consumação do amor de Bela e o príncipe, que se amam desbragadamente. “Dessa forma, o casal não perderia tempo com as viagens e poderia dedicar todos os instantes livres ao prazer”, observa em outra passagem.
Os roteiristas da Disney, como se vê, só tiveram mesmo o trabalho de criar um antípoda para dar um conflito e mais ritmo à história – função do aristocrata Gaston, vilão que faz de tudo para ficar com Bela – e os objetos animados que povoam o castelo onde a Fera, na versão da Madame de Beaumont, vive solitária. Na versão da Madame de Villeneuve, há animais como macacos e papagaios, além de gênios invisíveis, pelo palácio, todos apaixonados pela mocinha Bela, a personagem sem defeitos.
As possíveis origens
Entre as possíveis inspirações da fábula, estão lendas de regiões diversas sobre a relação entre humanos e bichos, como um conto escandinavo em que uma mulher toda noite se deita com um urso branco, East of the Sun and West of the Moon (A leste do sol e a oeste da lua, em tradução livre), e o mito grego de Eros (ou Cupido) e Psiqué, garota estonteante que é destinada pela invejosa Afrodite a um terrível casamento: cabe a Eros, filho da deusa, flechar a menina e fazê-la se apaixonar por um monstro, mas é ele quem cai de amores por ela e então passa a agir como se fosse seu marido, mas sem permitir que ela veja seu rosto, para não desfazer por completo o plano – e ela então se encanta por seu caráter, não por sua beleza.
Outra fonte, apontada como provável pelo escritor e pesquisador Rodrigo Lacerda, autor do prefácio do volume em capa dura que a Zahar lançou no ano passado com a edição original e a seguinte de A Bela e a Fera, é um nobre espanhol do século XVI. Pedro González, um personagem real, sofreria de hipertricose, doença também conhecida como “síndrome do lobisomem”, que deixa o corpo todo coberto de pêlos. González chegou a casar e constituir família, como a Fera de Madame de Villeneuve.
“Muito provavelmente, ela se inspirou em outros casos de noivo ou noiva animal que existem, publicados em coletâneas anteriores ao seu livro, e tirados do folclore popular. E há a possibilidade de que ela tenha ouvido falar do Pedro González, um personagem histórico. Ele tinha uma doença que o transformava, aos olhos de seus contemporâneos, num homem-fera”, diz Rodrigo a VEJA.
Para ele, a versão da Disney é bem-vinda. “As mudanças, ao se recontar contos de fadas, são comuns. Não vejo nenhum problema em você se apropriar de uma história como essa e acrescentar ou eliminar elementos”, diz. “O desenho era uma história muito bem contada, com personagens novos, bem desenvolvidos, e que ajudou a manter a popularidade da história junto às novas gerações, então acho que foi um serviço bem prestado.”
Múltiplas leituras
Além da mencionada hipótese de que a mocinha sofra de Síndrome de Estocolmo e da óbvia leitura edificante, A Bela e a Fera autoriza uma série de interpretações distintas. É nisso que reside a riqueza da história, é o que explica a sua sobrevida.
Há quem diga que o enredo fala do temor que todos temos pelo que de animalesco ou monstruoso há dentro de nós – e essa poderia também ser uma das inspirações de sua autora. Em uma variante dessa teoria, há quem veja na história uma representação do medo que temos daquilo que de animalesco emerge em nós quando nos apaixonamos – quando, se é costume dizer, perdemos o controle. E há quem defenda que o medo, na história, é aquele que uma mulher sente ao se ver pela primeira vez diante de um homem – vale lembrar que no esquema de casamentos do século XVII, matrimônios eram acertados sem que a menina conhecesse de fato o seu noivo, que poderia ser um homem feio ou muito mais velho ou de alguma forma intolerável para ela.
Aqui, aliás, cabe um contraponto: se muitos entendem a história escrita por Madame de Villeneuve como crítica ao mercado de casamentos, outros tantos veem a versão de Madame de Beaumont como uma tentativa de fazer as leitoras se resignarem ao seu destino de noivas negociadas. Como se, com sua versão editada da história, ela dissesse, “Esqueça que ele parece deplorável, foque nas qualidades”.
A contradição, aliás, é uma prova do que A Bela e a Fera pode oferecer. A obra está perto de completar 300 anos. E deve passar outros tantos em discussão.