Luis Pérez-Oramas, curador da exposição em cartaz até junho em Nova York, compara a pintora brasileira à mexicana pela ‘dimensão emblemática’ e a Frans Post pela figuração única da paisagem do país, e comemora a quebra da hegemonia na arte moderna
Curador da 30ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, de uma exposições de Carlito Carvalhosa e Lygia Clark em Nova York e do nicho de arte latino-americana no Museu de Arte Moderna de Nova York, onde hoje atua de forma independente, o venezuelano Luis Enrique Pérez-Oramas tem familiaridade com a arte brasileira. Coube a ele, ao lado da americana Stephanie D’Alessandro, agora contratada do Metropolitan Museum of Art, organizar a mostra Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil (Tarsila do Amaral: inventando a arte moderna no Brasil, em tradução direta), em cartaz de fevereiro a junho no MoMA, depois de uma temporada de três meses no Art Institute of Chicago, até janeiro.
Na mostra, estão cerca de 120 obras da herdeira de fazendeiros que preferiu se dedicar às artes na cidade à lida no campo e ensejou a criação, pelo poeta Raul Bopp e pelo então marido, o escritor Oswald de Andrade, do Movimento Antropofágico. Bopp e Andrade foram impactados pelo quadro Abaporu, que em tupi significa “aquele que come carne humana”, uma figura “primitiva e monstruosa”, segundo a própria pintora, que a vislumbrou em sonho.
A contribuição mais importante de Tarsila para a história da arte moderna está em sua reinvenção de uma forma de figuração orgânica, ampliada, colorida e sensual, estilisticamente eclética
Na opinião de Oramas, Tarsila do Amaral (1886-1973), que estudou – e subverteu sua – arte em Paris sob os cuidados do cubista Fernand Léger, está para o Brasil assim como Frida Kahlo está para o México. Ambas são emblemas de seu país. Nem por isso organizar uma exposição desse vulto se constituiu uma tarefa simples, ele reconhece: o mercado de arte pauta o gosto do grande público ao privilegiar artistas contemporâneos em detrimento dos modernos e os grandes centros econômicos e culturais excluem de seu horizonte os artistas que brotam da periferia.
Mas, segundo Oramas, a exposição que reúne telas como Abaporu, Antropofagia e A Negra vem sendo bem recebida pelos americanos, tanto por críticos como por visitantes, recepção que tem o efeito positivo de quebrar a “narrativa hegemônica” sobre a modernidade na arte e mostrar o que há além do eixo Europa-Estados Unidos. “Tarsila do Amaral incorpora um caso único do início da arte moderna nas Américas: uma figura primordial para uma das cenas artísticas mais significativas no mundo atual. Tarsila há muito merecia ser exibida nos principais museus da América.”
Como surgiu a ideia de fazer uma exposição individual de Tarsila do Amaral nos Estados Unidos? Há tempos, eu considerava a necessidade de trazer o trabalho de Tarsila para o público do MoMA. Juntamente com Stephanie D’Alessandro, que me convidou para trabalhar com ela neste projeto, tive a compreensão de que Tarsila incorpora um caso único na história do início da arte moderna nas Américas: uma figura primordial para uma das cenas artísticas mais significativas no mundo de hoje. Tarsila há muito merecia ser exibida nos principais museus de arte da América. Ela também é um caso ideal por mostrar que a modernidade era um fenômeno de múltiplos ângulos: Tarsila dificilmente se encaixa na versão euro-americana da arte moderna. No meu antigo cargo de curador de arte latino-americana no MoMA, pretendia apresentar exposições monográficas de artistas que não se encaixam, razão pela qual organizei a exposição sobre León Ferrari e Mira Schendel, assim como as retrospectivas de Lygia Clark e Joaquín Torres-García. Tarsila cumpre este desafio de forma exemplar: apresentar seu trabalho, focando notavelmente em sua década mais ilustre de produção, era necessário para um museu cuja missão é apresentar as produções mais relevantes da arte moderna.
De que maneira Tarsila difere dos modernos canônicos? O modernismo canônico é programaticamente auto-reflexivo e rejeita elementos anedóticos. Mas, para mim, o principal não é destacar o quão diferente Tarsila é vis-à-vis seus pares modernos na Europa ou nos Estados Unidos. A questão é como, e por quê, dentro de uma certa “narrativa” da história da arte moderna, Tarsila foi excluída ou relegada a segundo plano, ao contrário de artistas que se tornaram mais conhecidos. Nós esquecemos a lição original do pensamento simbólico moderno: que é na diferença, e não na semelhança, que os significados crescem e florescem. E, além disso, ela pode acabar não sendo tão diferente: pense, por exemplo, no colorido vibrante do americano Stuart Davis.
Tarsila do Amaral enfrentou, com coragem, o desafio de produzir uma forma de figuração moderna para a paisagem brasileira. Nesse sentido, tem apenas um precedente: Frans Post, no século XVII
De que modo se construiu essa “narrativa” a que o senhor se refere? A narrativa dominante sobre a arte moderna foi produzida no último século pelas instituições centrais do Atlântico Norte e tende a se fundamentar na falsa crença de que a modernidade e a arte moderna que se desenvolveram aí são universais, uma narrativa que torna difícil para artistas desconhecidos de locais além dos Estados Unidos e da Europa Ocidental serem vistos pelo grande público ou exibidos em instituições importantes. Por essa narrativa hegemônica, a arte moderna não chega a três ou quatro países da Europa Ocidental, além da Rússia e dos Estados Unidos. Há muito mais do que isso, nós sabemos e sempre soubemos, mas hoje é urgente abordar a paisagem alternativa, fraturada e heterotópica do modernismo, em vez de continuar acreditando que existe um único cânone para a arte moderna, que é em grande parte resultado de colocações tardias de historiadores da arte.
A força da arte contemporânea foi também um obstáculo para a exposição? De certo modo. A decisão de mostrar Tarsila em Chicago e em Nova York, algo que eu e Stephanie D’Alessandro abordamos com cuidado, está em oposição a uma tendência geral no mundo da arte que eleva o “contemporâneo” acima do (e às vezes infelizmente contra o) os primeiros modernos. A forma como o mercado de arte contribui para essa exclusão da arte moderna das tendências da moda nas artes faz com que seja necessário um grande esforço para trazer à tona uma figura “nova” da década de 1920 e apresentá-la ao público contemporâneo.
A resenha do jornal The New York Times sobre a exposição de Tarsila do Amaral diz que o MoMa se concentrou na gênese do modernismo brasileiro na década de 1920, em vez do “realismo socialista” da artista na década de 1930, por tradicionalmente preterir esse tema. Que recorte o senhor fez da produção da pintora? Esta é uma opinião do jornal. Eu, é claro, respeito, mas discordo profundamente. O legado de Tarsila do Amaral não se baseia no seu tratamento breve e convencional de temas sociais. Ela nunca foi uma “realista” social, e sua contribuição mais importante para a história da arte moderna está em sua reinvenção de uma forma de figuração orgânica, ampliada, colorida e sensual, estilisticamente eclética. Imagine, por um segundo, um mundo de cabeça para baixo onde Picasso fosse totalmente desconhecido: você colocaria suas pinturas sociais dos anos 1950 contra a Guerra da Coreia acima da invenção do cubismo? Eu desconheço uma encarnação de hegemonia cultural como aquela que com frequência, simulando uma autoridade intelectual fundamentada na ignorância, é feita pela imprensa cultural americana.
Nós esquecemos a lição original do pensamento simbólico moderno: que é na diferença, e não na semelhança, que os significados crescem e florescem
Não faz sentido então, como fizeram alguns críticos americanos, relacionar Tarsila ao marxismo? Nenhum. Tarsila não era marxista, pelo menos não a sério, uma pessoa que lê Marx ou discute as questões que ele levanta com rigor. Ela tinha relação com alguns marxistas – ou simpatizantes de causas de esquerda na década de 1930 –, incluindo o seu terceiro marido, o psiquiatra e intelectual Osorio Cesar. Mas seu “marxismo” foi breve e não afetou sua produção de forma significativa ou duradoura. No seu catálogo, o número de obras pautadas por temas explicitamente sociais e políticos não passa de um mero punhado. Na realidade, e isso é interessante, a tela Antropofagia e o conceito que a embasa representam uma alternativa ao esquerdismo convencional e ao marxismo salutar das décadas de 1920 e 30. Talvez seja esta a razão da sua atualidade duradoura: é muito mais complexo do que o marxismo escolar, no sentido de que, de alguma forma, Antropofagia implica, potencialmente, toda a discussão pós-colonial. Sem mencionar – dado que sempre é curiosamente negligenciado – que a maioria dos intelectuais que se diziam marxistas na década de 1930 eram descaradamente cúmplices em relação a Stalin e ao stalinismo, um momento muito obscuro na história humana.
Como Tarsila influenciou o modernismo e a arte brasileira que surgiu depois dela? Mais que influenciar o modernismo, Tarsila integra um grupo de originais artistas modernistas brasileiros: ao lado de Ismael Nery, Cícero Dias, Candido Portinari, Anita Malfatti e Lasar Segall. Esses artistas formaram uma constelação única no panorama moderno das Américas. E Tarsila, especificamente, conseguiu incorporar uma dimensão emblemática: ela não é apenas uma artista, mas uma personalidade, um personagem, uma lenda e um símbolo coletivo. Nesse sentido, a comparação com Frida Kahlo ganha força, mesmo que elas sejam completamente diferentes em suas formas de abordar a relação entre arte e vida. Porque Tarsila tornou-se um verdadeiro signo do modernismo brasileiro, sua figuração tão peculiar continua influenciando, de alguma forma, tanto ao nível do subconsciente coletivo quanto ao nível de seu legado factual e icônico. Não consigo ver a arte de Adriana Varejão, Beatriz Milhazes ou Ernesto Neto sem o precedente de Tarsila.
Quanto Tarsila do Amaral deve à arte que se fazia na Europa, onde estudou no início do século XX? Podemos pensar nela como artista em dois períodos: como pintora acadêmica, mais convencional e ligada à arte do século XIX; e como artista moderna, em Paris, sob a breve orientação de André Lhote, Albert Gleizes e, mais notavelmente, Fernand Léger, então em São Paulo como figura central na reinvenção do modernismo brasileiro. Mas ela realmente floresce como artista única no início da década de 1920, quando encontra o seu estilo, a sua assinatura, alinhando uma figuração pós-cubista moderna à própria assimilação da exuberância e do exotismo de seu país natal. É quando passa de um exotismo colorido para uma figuração estilizada, surrealista, refinada, que coincidiu com o lançamento do Manifesto Antropófago, em 1928. Ela é uma figura fundamental para o Modernismo nas Américas. Enfrentou, com coragem, o desafio de produzir uma forma de figuração moderna para a paisagem brasileira. Nesse sentido, tem apenas um precedente: Frans Post, no século XVII. Ela sozinha inventou uma forma de figuração que não se trata simplesmente da aplicação de procedimentos modernos formais à realidade local, mas está incorporada na “longue durée” da arte europeia. Seu Abaporu carrega o fantasma de Manet – a ninfa nua no Dejeuner sur l’herbe (em português, O Almoço sobre a Relva ou O Piquenique no Bosque) – transformado, metamorfoseado em um ser assexuado, elástico, gigantesco e estranho.
Por que o senhor diz que Tarsila do Amaral foi fundamental para o modernismo nas Américas? Simplesmente porque qualquer descrição, resumo ou argumento sobre o modernismo dentro deste continente que não levasse em conta o seu legado seria incompleto. Não estou querendo dizer que ela foi em larga e continentalmente influente, mas de fato ela é muito mais conhecida e admirada fora do Brasil do que qualquer outro artista brasileiro moderno, com certeza.
Como os americanos têm recebido a exposição Tarsila do Amaral? Eu acho que a mostra foi extremamente bem recebida. Tarsila é uma artista que pode ser facilmente apreciada por sua iconografia. No entanto, além dessa impressão superficial de colorido e sensualidade, existem camadas de questões, desde a deformação do modernismo canônico até o desafio de conceber uma nova forma de representação para uma mensagem tão complexa, o projeto antropofágico.
O senhor foi curador da Bienal Internacional de São Paulo, e conhece bem a arte brasileira. Por que, na sua opinião, ainda estamos tão ligados ao modernismo em pleno século XXI? Porque o modernismo do início do século XX não é nada além de um rótulo ou uma fachada, uma ilusão por trás da qual se desdobra uma gama de complexos, fraturados, fractais e vernaculares modernismos sobre os quais ainda não chegamos a um acordo. Suas mensagens e legados inacabados e seus protagonistas desconhecidos ainda aguardam interpretação.
Nos últimos meses, testemunhamos episódios de ataques conservadores a telas, performances ou exposições de arte, não apenas no Brasil. O mundo atual está menos tolerante à arte? Eu não acredito em zeitgeist. A menos que percebamos que nós, nossas precárias comunidades humanas e nossa condição humana frágil, são o zeitgeist. Vejo três sintomas preocupantes em nosso tempo presente relacionados a eventos infelizes de intolerância: esquecemos o trauma – o trauma do totalitarismo, o trauma do Holocausto, o trauma da guerra mundial – e, portanto, somos menos atentos e cuidadosos diante da fragilidade dos acordos e equilíbrios políticos. Perdemos a sensação da universalidade, o desafio do universal. E perdemos o vínculo entre linguagem e juramento, como Agamben argumenta: enunciar não significa nada hoje, não há mais esperança de promessa sagrada na palavra, não há mais sacramento na linguagem. Vide Trump. Esta é a era da enunciação sem sujeito, portanto, sem responsabilidade. Além disso, porque os “dispositivos” permitem que o enunciador se distancie da enunciação – o Twitter não sou eu, o Facebook não é você –, todo mundo acaba enredado em uma cacofonia de declarações irresponsáveis. Finalmente, perdemos o sentido e a urgência de proclamar e defender a liberdade de expressão (artística) universal. Dias sombrios.
O senhor é venezuelano. Como você vê a situação no país hoje? Ainda mais sombria do que nos dias mais sombrios. É o fim de uma nação da maneira como a conhecemos ou nascemos ou a abraçamos.