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Brasil

PCC S/A: a gestão empresarial do crime organizado

A gestão empresarial do crime organizado

por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 set 2017, 16h09 - Publicado em
12 fev 2016
14h03

Na madrugada do dia 10 de março de 2016, um dirigente do PCC envia um e-mail para uma de suas subordinadas com o codinome Alexandre Magno. O título da mensagem: “Projeto Estrutural 2016”. Entre os anexos, um organograma (confira abaixo) com linhas e setas mostrando cinco diretorias, três núcleos de coordenação e outras dezessete células. Em outro arquivo, a descrição de cada função. Por meio da quebra de sigilo telemático, o e-mail chegou às mãos da Polícia Civil de São Paulo, que se deparou com uma verdadeira estrutura empresarial dentro da facção criminosa. Nas palavras dos investigadores, uma “multinacional do crime” que produz relatórios mensais, faz auditorias e avaliações de desempenho, gerencia seguros para os presos e paga bonificações para premiar os funcionários mais produtivos.

Esse modelo de gestão veio à tona na Operação Ethos, deflagrada pela Polícia Civil e o Ministério Público de São Paulo há duas semanas, e foi detalhado em um relatório com mais de 1.160 páginas, obtido com exclusividade por VEJA. Por meio de planilhas, e-mails e cartas apanhadas dentro dos presídios, o inquérito mostra a rotina de um ano da chamada célula R (chamada antes de Sintonia das Gravatas), formada essencialmente por advogados. Na última semana, a Justiça de Presidente Venceslau (SP) deferiu a prisão preventiva de 54 alvos da Operação – cinco continuam foragidos. Entre os presos estão Marcos Herbas Camacho, o Marcola, e o vice-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Luiz Carlos dos Santos.

Apesar de ser sustentado pelo dinheiro do narcotráfico, a célula R não se ocupa do comércio de drogas ou da morte de desafetos. São advogados de Rua ou Recursistas (daí o R) que ficam à disposição da facção para resolver problemas cotidianos. Entre as principais funções estão pagar propina a autoridades corruptas, infiltrar-se em órgãos de direitos humanos e ser o canal de comunicação entre a liderança encarcerada e os subalternos soltos. Serviços que vão muito além de fazer a defesa jurídica dos criminosos.

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O CEO DO PCC

O desenvolvedor da célula R foi Valdeci Francisco Costa, um bacharel em direito e autor de livros autobiográficos que sempre se manteve longe dos holofotes – geralmente concentrados em Marcola. Após passar uma boa temporada (quase 10 anos) na Penitenciária II de Presidente Venceslau (SP), ganhou a liberdade em maio de 2015. E pisou no asfalto com uma missão — implementar uma “estrutura orgânica de feição empresarial” na facção, conforme o inquérito assinado pelo delegado Éverson Aparecido Contelli. Ele é o Alexandre Magno que mandou o e-mail citado acima. No organograma que ele mesmo fez, autodenominou-se “diretor-presidente”. Na linha hierárquica, estava abaixo apenas do Conselho Deliberativo, constituído por Marcola e outros onze bandidos que tomam as decisões finais na quadrilha.

Assim como muitos integrantes, Costa atende por uma infinidade de apelidos. A maioria se refere à sua fama de “crânio” e religioso – Doutor, Notebook, Circuito Integrado, Abraão, José de Arimatéia e dr. Pedro. Numa mensagem interceptada pela polícia no Telegram, um advogado se refere a Costa como alguém “mil grau que não tem comparação o QI dele (sic)”.

Apesar de a ter cumprido, sua missão durou pouco. Em junho deste ano, foi preso em uma operação do Gaeco de Campinas e hoje se encontra atrás das grades na Penitenciária de Avaré (SP). No seu lugar, entrou a advogada Juliana Queiroz (ver organograma abaixo), que também foi indiciada na Ethos, mas continua foragida da Justiça.

OS INTEGRANTES

Na ocasião em que foi detido, o núcleo jurídico do PCC colocou em prática o protocolo fantasma, um serviço de contrainteligência que prevê o descarte de todas as mídias e a troca dos codinomes utilizados. Costa havia criado uma estrutura de células que se autogeriam. Só casos extremos chegavam a ele e, mesmo assim, eram intermediados por duas gestoras, Marcela Antunes e Anna Marques. Quando alguém era pego, a célula se desfazia, impedindo que as autoridades chegassem no topo da rede.

Com a quebra do sigilo telemático das duas intermediárias, a polícia teve acesso a planilhas (ver abaixo) que mostravam a quem se referia cada codinome. Em uma delas, os Rs eram associados a modelos de carro. Exemplo: o R1 (Marcela) correspondia ao Volkswagen Gol. E o R2 (Anna) ao Fiat Palio.

Costa sempre teve a pretensão de constituir uma ONG. Teria sido dele a ideia de eleger dois “irmãos” no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), vinculado à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo. O plano não deu certo e ele se viu obrigado a cooptar alguém de dentro da entidade. O escolhido foi Luiz Carlos dos Santos, que era vice-presidente, mas foi afastado do cargo após confessar que vinha recebendo uma “mesada” (de 5.000 reais) do PCC. Nas planilhas, o conselheiro aparece com o codinome “amigo da portuguesa”.

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Em seu depoimento à polícia, Santos relatou que seu trabalho consistia em dar encaminhamento a denúncias formuladas por presos da facção, em sua maioria falsas. Costa lhe cobrava por resultados – e exigia que todas as informações fossem enviadas em relatórios semanais.

Em seus escritos, o diretor-presidente costuma se dizer arrependido do passado criminoso. Foi preso pela primeira vez em 2006, no ano em que o PCC se celebrizou por uma séria de ataques a forças policiais. Na época, era apontado como o encarregado das arrecadações do PCC no interior de São Paulo, em cidades como Campinas, Sorocaba, Ribeirão Preto, Marília e Bauru.

“As pessoas não são más, só estão perdidas. E virar as costas ou vingar-se não é a resposta. Na busca de uma solução para o problema da criminalidade, creio que uma visão pode ser substituir a vingança. Estou convencido de que há muito de estreito negativo e errado na atitude da sociedade. Em apenas punir alguém que frequentemente está em guerra consigo mesmo. Infelizmente, a tradição tem efeito de algemar o progresso”, escreveu ele no livro de sua autoria chamado Rábula. A polícia apura se a editora que publicou as obras pertence a ele.

Em depoimento à Polícia Civil, Costa negou fazer parte dos quadros do PCC – o mesmo fizeram notáveis integrantes da facção, como Marcola, Antônio José Muller Júnior, o Granada, e Paulo Cesar Souza Nascimento Junior, o Neblina.

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O RH, O SAP E OS PLANOS DE EXPANSÃO

Desde que foi criado, no início dos anos 90, sabe-se que o PCC mantém um estatuto com regras de comportamento a serem seguidas dentro e fora da cadeia. Na operação Ethos, os investigadores descobriram que a quadrilha também tem um sistema de bonificação e aumento gradual de salário para os integrantes da célula R como recompensa pelo “bom trabalho desenvolvido” — quase como um plano de carreira. As diretrizes foram encontradas em uma carta manuscrita e digitalizada (confira abaixo) com o título “Conjunto de Medidas Disciplinares”. Os bônus são pagos em quantias de 1.000 reais.

O texto também institui um sistema de advertências a quem cometer “faltas graves”, como não responder telefonemas e e-mails, não entregar relatórios ou “não cumprir tarefas determinadas e pedidos variados feitos pelas gestoras associadas”. As punições são definidas por cores: verde (“só um puxão de orelha”); amarelo (“aviso para redobrar a atenção”) e vermelho (“cobrança verbal dura e redução de honorários”). Cada cor definia um prazo de reabilitação de 6 meses, 8 meses e um ano, respectivamente.

Segundo as investigações, os advogados recebiam em torno de 1 milhão de reais por mês e não trabalhavam para clientes específicos, mas para a facção como um todo. Um e-mail recebido por Costa – e anexado ao inquérito – orienta-o a providenciar um R (advogado) para ajudar o guerrilheiro Mauricio Hernandez Norambuena, que cumpre pena pelo sequestro do publicitário Washington Olivetto em 2002. A proximidade entre Norambuena e o PCC vem de longa data. Foi ele quem ensinou táticas de terrorismo às lideranças da quadrilha, quando estava preso em Presidente Bernardes (SP), em 2006. “Nessa relação não há qualquer tipo de vínculo advogado cliente, mas sim uma relação entre advogado e organização criminosa, que recebe dinheiro proveniente do narcotráfico para atender a pessoas vinculadas ou colaboradoras da organização criminosa”, diz o inquérito.

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A implantação dos bloqueadores de celular nos presídios paulistas obrigou a cúpula do PCC a encontrar novas formas de comunicação com o “mundo externo”. Uma delas era usar os advogados da célula R, que por meio da carteira da OAB tinham acesso fácil aos presídios e ainda contavam com o sigilo garantido à profissão. A polícia chegou a monitorar um desses momentos. Numa mensagem, um detento transmite ordens a uma das gestoras dos Rs, Anna Marques, para que levante informações sobre agentes penitenciários de Cornélio Procópio, no Paraná. O recado é datado de 17 de novembro de 2016. A suspeita é que os dados seriam usados para uma eventual execução ou para fazer ameaças. “O evento instruiu relatório de inteligência para adoção de cautelas necessárias para preservação da vida desses agentes”, diz o inquérito.

Os advogados R também tinham o papel de atender às demandas dos chefões da facção e de seus familiares. Em especial, marcavam consultas médicas e procedimentos cirúrgicos para eles. Em depoimento à Polícia, o próprio Marcola diz que contatou a advogada Simone, um dos alvos da Ethos, para arranjar um médico que lhe operasse o ombro – o procedimento teria custado 27.000 reais.

Com as células em ação e organizadas, o PCC começou a pensar longe. Um dos planos era protocolar uma série de denúncias de abusos na cadeia, a maioria sem fundamento, na Organização das Nações Unidas (ONU). A finalidade era conseguir benefícios no sistema penitenciário e o fechamento do presídio de Presidente Bernardes (SP), onde os presos ficam isolados no Regime Displicinar Diferenciado (RDD). O ex-conselheiro do Condepe, Luiz Carlos dos Santos, confirmou em seu depoimento o “projeto internacional” do PCC. “Estava em curso o plano que poderia constituir, na prática, uma grande denunciação caluniosa internacional, em evidente prejuízo político e econômico ao Estado brasileiro”, diz o inquérito.

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Os próximos passos da Operação Ethos se concentrarão em detectar se o PCC conseguiu replicar o modelo de gestão em células de outros Estados. Há indícios de que o mesmo esquema foi implementado em Santa Catarina e Mato Grosso. “O know how obtido pela célula “R” no Estado de São Paulo fez com que o Conselho Deliberativo [a facção] passasse a exportar esse modo de agir para outros Estados da federação, principalmente naqueles Estados sedes de presídios federais”, conclui o delegado Contelli, no texto.

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Reportagem: Eduardo Gonçalves
Edição: Marcos Rogério Lopes
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral

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