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Cultura

Festival de Parintins: os fascínios de uma rivalidade centenária

Uma ilha cravada no coração da Amazônia se divide em duas: azul ou vermelho

por Victor Affonso e Emilãine Vieira para Abril Branded Content Atualizado em 11 jul 2017, 15h46 - Publicado em
30 jun 2017
19h21

Chega o mês de junho e os amazonenses já sabem: vai ter guerra na floresta. É quando uma ilha cravada no coração da Amazônia se divide em duas. Azul ou vermelho, estrela ou coração, zona norte ou zona sul, Caprichoso ou Garantido – não há meio-termo. É essa rivalidade centenária que dá o tom do Festival Folclórico de Parintins, uma grande ópera amazônica a céu aberto que, com patrocínio do Bradesco, acontece nos dias 30 de junho e 1° e 2 de julho no segundo município mais populoso do estado, a 370 quilômetros de Manaus.

Ao longo de três noites os bois se revezam na arena do bumbódromo, durante duas horas e 30 minutos por noite, para recriar o Auto do Boi-Bumbá. O que rege o espetáculo é a temática anual que cada agremiação apresenta, dividida em três subtemas, um para cada noite. Neste ano, Caprichoso exalta A Poética do Imaginário CabocloGarantido celebra a Magia e Fascínio no Coração da Amazônia.

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A rivalidade

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(Elcio/Vídeo Park/Divulgação)

Se hoje a disputa é uma grande festa com reconhecimento internacional que mobiliza milhares de pessoas e atrai outros milhares de turistas, nem sempre o clima foi tão amigável assim. Parintins, também conhecida como Ilha Tupinambarana, recebeu status de cidade em 1880 e carrega no nome o espírito de rivalidade. Sua designação homenageia os índios parintintins, tribo guerreira do tronco tupi que deixou sua marca na região por guerrear com as tribos alojadas na ilha.

O boi-bumbá – uma manifestação do Maranhão, onde é chamada de bumba-meu-boi, hoje uma festa distinta – chegou à Amazônia já com os primeiros imigrantes nordestinos, em sua maioria maranhenses. Já os bois feitos de pano, madeira e curuatá surgiram por volta da década de 1910 em brincadeira de rua, palco de batalhas que consistiam em cada dono arremessar seu boi contra o outro, ganhando o que ficasse menos destruído.

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(Elcio/Video Park/Divulgação)

Foi nesse cenário que nasceram Caprichoso e Garantido, junto com outros bois, de outras cores e até de outros municípios. Esses dois se destacaram pelas histórias e mitos que os cercam há mais de um século. Apesar de ainda hoje ser motivo de controvérsias, ambos bois declaram como 1913 o ano oficial de suas fundações. Com um histórico envolto por promessas católicas de nordestinos e amazonenses, esses descendentes de maranhenses, deram início aos desfiles dos bumbás pelas ruas de Parintins. Entre os anos 1930 e 1960, em comemoração ao dia de São João Batista, os bois saíam e dançavam em frente às residências, prosseguindo pela via repleta de fogueiras e acompanhados pelos brincantes – tradição que até hoje se mantém viva dos dois lados da ilha graças a eventos como a Ladainha e o Boi de Rua.

Eis que surgiu em 1965, o Festival Folclórico de Parintins, organizado pela Juventude Alegre Católica, um braço da igreja na Amazônia, no intuito de organizar as torcidas e os eventos públicos, que ganhavam ares cada vez mais violentos. Os bois Caprichoso e Garantido não participaram da primeira edição, que contou com a apresentação de quadrilhas, então foco do evento. Apenas no ano seguinte, os bumbás foram convidados para o festival, no qual o campeão foi definido de acordo com a intensidade dos aplausos do público presente. Com o passar dos anos, os dois bois acabaram se tornando as atrações principais do Festival, que até hoje mantém outras festas como ciranda, quadrilha e boi-mirim numa programação que dura aproximadamente um mês.

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Profissionalização

Bumbódromo
Bumbódromo (Yuri Pinheiro/SECOM Parintins/Divulgação)

No início da década de 1980 os bois deixaram de ter um “dono” e passaram a ser agremiações folclóricas. Foi um período de profissionalização, numa época em que a Prefeitura de Parintins assumiu o Festival e criou o bumbódromo, em 1988, inspirado no recém-inaugurado sambódromo do Rio de Janeiro, mas no formato de uma cabeça bovina. Na década seguinte, o Festival, que já era bastante popular em todo o Amazonas e também no oeste do Pará, alcançou relevância nacional e, perto da virada do milênio, internacional, transformando o município em uma verdadeira atração turística da Região Norte – e se tornando eixo fundamental da economia parintinense.

A influência na cidade é tanta que o Festival, tradicionalmente disputado nos dias 28, 29 e 30 de junho, passou, em 2005, a ser organizado sempre no último fim de semana do mesmo mês, graças a uma lei municipal, na tentativa de atrair cada vez mais turistas, já que agora a festa seria sempre nos fins de semana. Deu certo: comerciantes e serviços como hotelaria, alimentação e transporte chegam a lucrar, em três dias, o equivalente a três meses em outra época do ano.

Apesar do Festival ser sempre em junho, os ensaios, festas e trabalhos técnicos nos “currais” (como são chamados os complexos dois bois, denominados Cidade Garantido e Curral Zeca Xibelão, respectivamente, onde é proibido qualquer cor que remeta ao boi “contrário”) acontecem durante todo o ano. A maioria dos primeiros ensaios e as grandes festas acontecem em Manaus, mas geralmente é Parintins que recebe a gravação anual do DVD e CD oficial.

Os preparativos para o Festival em si começam quatro meses antes, logo após o carnaval, quando cerca de 1 500 pessoas em cada agremiação trabalham exaustivamente nos galpões, preparando fantasias, cenários e alegorias. Tudo, exceto as composições, é mantido em máximo segredo possível até a semana do evento, quando os ensaios finais são abertos ao público e as gigantes alegorias, que chegam a medir 40 metros de altura, são empurradas dos galpões até a praça ao lado do bumbódromo, onde podem enfrentar ocasionalidades como tempestades e princípios de incêndio – o que não é raro – até a noite em que são apresentadas ao público.

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Há 18 anos a primeira da fila

Arquibancada da galera
Arquibancada da galera (LiadePaula/MinC/Divulgação)

Para quem não quer pagar o valor cobrado pelos ingressos para as três noites de Festival, a alternativa é enfrentar a fila da galera para entrar na arquibancada. Ali, se vive intensamente cada noite de espetáculo – literalmente fazendo parte da apresentação, já que quem está lá precisa seguir os comandos emitidos por técnicos do bumbá. Os portões são abertos no fim da tarde, cerca de cinco horas antes das apresentações, mas os primeiros a entrar estão no local há dias, enfrentando chuva e sol, para conseguir lugar.

Uma mulher já é conhecida, inclusive, por ser sempre a primeira da fila do Garantido há 18 anos – nesta edição, ela chegou dois dias antes do início do Festival. Ao todo, o bumbódromo comporta 17 000 pessoas. Quem não pretende ou não consegue entrar aproveita os bares e restaurantes à beira-rio, o cenário amazônico da orla parintinense e os famosos passeios de triciclo para amenizar o calor que beira diariamente os 40 graus Celsius.

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Destaque nacional

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(Elcio/Vídeo Park/Divulgação)

O Festival é tradicionalmente transmitido pela televisão, algo que ajudou a moldar a identidade do evento desde meados dos anos 1990. Afinal, as comparações com o Carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo são inevitáveis e, quando a festa folclórica começou a ser exibida para o Brasil inteiro, profissionais parintinenses, famosos pela criatividade artística, começaram a ser chamados para trabalhar nos desfiles de fevereiro.

Neste ano, o evento – que anteriormente já foi veiculado pelas afiliadas da Rede Globo, SBT e Bandeirantes – voltará a ter transmissão para todo o país em rede aberta: a Rede Calderaro de Comunicação, transmissora oficial do Festival e afiliada da Rede Record no Amazonas, que em anos anteriores já havia disponibilizado a festa pela internet, fechou parceria com a TV Cultura para exibição em todos os estados e no Distrito Federal.

A grandiosidade do Festival chama a atenção e muitos artistas de renome nacional podem confirmar isso. Daniela Mercury cantou na arena durante apresentação do Garantido em 2010 e levou dançarinos encarnados para sua apresentação no trio elétrico de Salvador.

O compositor Chico da Silva escreveu o clássico Vermelho, um dos grandes sucessos de Fafá de Belém, para o Garantido, e hoje a música é usada até como grito de torcida pelos fãs do time de futebol português Benfica, apelidado de “Encarnados”. Pelo lado do Caprichoso, Carlinhos Brown chegou a ir a Parintins em 2013 para gravar a toada A Cor do Meu País para o DVD que celebrou o centenário do bumbá azulado. Já na edição deste ano, Leandro Lehart, do grupo de pagode Art Popular, gravou uma faixa do Caprichoso.

Também em Parintins, o Bradesco, patrocinador da festa, adicionou azul ao vermelho da sua identidade pela primeira vez, apoiando os dois bois.

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E o que é a apresentação?

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(Elcio/Vídeo Park/Divulgação)

O auto é uma composição teatral, subgênero da literatura dramática. A história do auto parintinense agrega muitos elementos regionais ao folguedo tradicionalmente maranhense, mas sem alterá-lo tanto: Pai Francisco trabalha em uma fazenda. Um dia sua esposa grávida, Mãe Catirina, deseja comer a língua do boi mais bonito do local, pedido ao qual Pai Francisco prontamente atende. O Amo do Boi, dono da fazenda, descobre e manda prender Pai Francisco caso ele não resolva a situação, levando o pobre caboclo a buscar auxílio de um pajé, que consegue ressuscitar o boi após um ritual indígena, o que salva Francisco e Catirina, e todos podem viver felizes para sempre.

São julgados 21 itens, divididos em três blocos: Bloco A, musical; Bloco B, cênico-coreográfico; e Bloco C, artístico. Apesar de Mãe Catirina e Pai Francisco continuarem sendo símbolos importantes, inclusive na apresentação de arena, já não somam pontos.

O Bloco A concentra os itens de Apresentador, que exerce o papel de anfitrião e mestre de cerimônia do espetáculo; Levantador de Toadas, cantor que conduz o desenvolvimento do tema; Marujada de Guerra/Batucada Encarnada, grupos de percussão compostos por cerca de 350 pessoas cada; Amo do Boi, que, personificando o dono da fazenda, desafia e instiga o boi “contrário” com versos; Toada, com composições que exaltam temas amazônicos; Galera, os torcedores que lotam as arquibancadas e agem como apoio à apresentação; e Organização do Conjunto Folclórico, a disposição durante as noites de todos os itens – individuais e coletivos –, de acordo com o tema e a tradição do Festival.

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(Roberto Carlos/SECOM-AM/Divulgação)
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O Bloco B traz os itens Sinhazinha da Fazenda, a delicada filha do dono da fazenda; Cunhã-Poranga, índia mais bonita da tribo com ares místicos; Rainha do Folclore, que simboliza e homenageia a diversidade da tradição brasileira; Porta-Estandarte, que, como o nome sugere, carrega a bandeira da agremiação, representando-a com seu bailado; Boi-Bumbá, em que é avaliada a evolução do boi de pano, comandada pelo “tripa”, que fica na parte interna do bumbá; Pajé, curandeiro e referência em muitos momentos da narrativa do espetáculo; e Coreografia. Os itens individuais, inclusive, são tratados como celebridades locais durante todo o ano e a disputa por vaga é intensa, apesar de alguns itens acumularem dezenas de anos na função.

Por último, o Bloco C avalia os elementos cenográficos dos itens Ritual Indígena, Tribos Indígenas, Tuxauas (chefes da tribo), Figura Típica Regional (representação da cultura amazônica), Alegoria, Lenda Amazônica e Vaqueirada (guardiã do boi). Os jurados – pesquisadores e práticos da arte, cultura e folclore brasileiro que atuam em outras regiões do Brasil – são sorteados dias antes do Festival ter início e são divididos nos blocos conforme suas áreas de conhecimento.

Independentemente da rivalidade, quando chega a última semana de junho os amazonenses já sabem: vai ter festa na floresta!

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