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Quando a alma não é pequena

Em 'O Primeiro Homem', o diretor de 'La La Land' relembra a ida do astronauta Neil Armstrong à Lua não como uma vitória americana na Guerra Fria

Por Isabela Boscov
Atualizado em 30 jul 2020, 20h07 - Publicado em 12 out 2018, 07h00

Há quem tenha cismado com o detalhe da bandeira — ou, melhor dizendo, da falta dela: hasteada no mastro plantado com gestos lentos na superfície lunar em 20 de julho de 1969, quatro dias depois de deixar a Terra, ela é vista no filme apenas como um vulto em que mal se distinguem as cores e formas do pavilhão americano. Emoldurar contra o azul quase negro do universo o conjunto constituído pela bandeira estranhamente rígida (não há ventos, e a pouca gravidade não basta para puxá-la para baixo) e pela figura do astronauta Neil Armstrong em seu traje espacial — esse é o tipo de instante de glória que diretor nenhum perde a chance de sublinhar em filmes como Os Eleitos (1983) ou séries como Da Terra à Lua (1998). Não, porém, em O Primeiro Homem (First Man, Estados Unidos, 2018), que estreia no país nesta quinta-feira. Tamanha é a indiferença do filme à tomada de posse da Lua que quase se poderia dizer que ela nunca aconteceu.

Não há dúvida, é claro, de que se pode tomar essa ausência conspícua de uma imagem marcante da missão Apollo 11 como uma declaração política do diretor Damien Chazelle: ele, e a maior parte da comunidade artística, não está aí para botar azeitona na empada nacionalista de Donald Trump. Há um motivo mais relevante, entretanto, pelo qual Chazelle relega a segundo plano o empenho dos Estados Unidos em vencer a corrida espacial que travava com a União Soviética e chegar àquele momento em que a humanidade pela primeira vez tocou outro corpo celeste que não o seu próprio. Por que, pergunta-se o filme, um homem — qualquer homem — se poria no rumo do mais absoluto dos desconhecidos e empreenderia uma jornada como essa, de perigos incalculáveis e desfecho incerto? Ao menos no caso de Neil Armstrong (1930-2012), o primeiro homem a pisar na Lua e o único, portanto, a tê-la inteira para si para sempre, as razões parecem ter sido tão intangíveis quanto profundas.

Em terra - Claire Foy, de ‘The Crown’, como a inteligente, geniosa e infalivelmente honesta Janet: brigas amargas em casa (Universal Pictures/Divulgação)

Desde a vertiginosa sequência de abertura, em que Armstrong (Ryan Gosling) tenta alcançar a estratosfera num superjato que quase se desintegra sob o esforço e por pouco não sela ali mesmo seu destino, o que sobressai para o espectador é a materialidade esmagadora da tentativa de vencer a gravidade terrestre — o barulho ensurdecedor, a falta de ar e a desorientação, os rebites que tentam saltar da fuselagem, a conspiração de tudo que é mecânico em favor do desastre — e a recompensa metafísica de fazê-lo. Piloto de testes na Base Aérea de Edwards, no deserto californiano de Mojave (o campo a partir do qual outro piloto, Chuck Yeager, venceu a barreira do som, em 1947), e engenheiro aeronáutico de talento, Arm­strong se via já então, em 1962, tracionado por esses vetores concorrentes. Sua filha Karen, pouco mais que um bebê, estava sendo tratada de um tumor cerebral, e Armstrong acompanhava, em planilhas e gráficos, a resposta dela à radioterapia. Ou, dito de outra maneira, tentava dimensionar a força da criança para retornar sã e salva, dos confins da doença, à vida.

Karen morreu naquele ano, aos 2 anos e 9 meses. E, da interpretação mínima (no bom sentido) de Gosling, depreende-se que a perda dela lançou Armstrong numa espécie particular, e terrível, de desconhecido. Deixar a Base de Edwards — onde estava sendo discretamente colocado no estaleiro, em razão das dúvidas sobre seu estado emocional — e juntar-se ao Projeto Gemini, da Nasa, teria sido, então, tanto uma decisão de carreira quanto uma busca por um novo limiar que, de alguma forma, propiciasse algum sentido maior à ordem das coisas.

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No lugar do épico e do triunfante que, verdade seja dita, cabem tão bem nas histórias sobre a corrida espacial dos anos 50 e 60, Chazelle opta por um registro discreto: prefere lidar com os desafios físicos do preparo, as mortes frequentes que iam minando o entusiasmo pelo Gemini, o desajuste de personalidades (Edwin “Buzz” Aldrin, que integrou a missão Apollo 11 com Armstrong e é interpretado pelo ótimo Corey Stoll, era o que se poderia chamar de um panaca), e as brigas amargas e sempre deixadas sem solução em casa. Claire Foy, a Elizabeth II de The Crown, brilha como Janet Shea­ron, a mulher inteligente, geniosa e impecavelmente honesta de Arm­strong, num papel de poucos diálogos mas com sensibilidade aguda para a exasperação da personagem. Chazelle trata do miúdo e do cotidiano, porém, no mesmo diapasão de sua estreia na direção, Whiplash (2014), e de La La Land, que fez dois anos atrás com Gosling: os pequenos obstáculos que devem ser vencidos um de cada vez e as repetições extenuantes destinadas a extirpar a imperfeição são, para seus protagonistas, a matéria-prima da transcendência que eles perseguem.

O Primeiro Homem parte de uma fonte excelente — a biografia homônima (lançada aqui pela editora Intrínseca) do historiador americano James R. Hansen, que entrevistou longamente Armstrong e dezenas de pessoas de seu círculo íntimo e profissional. Chazelle, entretanto, corta na carne, e com muito proveito, o material à sua disposição: elimina tudo que se refira à vida pregressa e posterior do protagonista para se concentrar tão somente nesse período de 1962 até a alunagem de 1969. Nada poderia explicar Armstrong — ou qualquer outro desbravador — tão bem quanto esses anos decisivos. Nem o próprio Armstrong, um homem reservado e calado, poderia se explicar tão bem quanto Gosling o faz com sua atuação reticente, repleta de espaços livres, que dá contorno ao personagem sem tentar preenchê-­lo em demasia. (Armstrong era de poucas palavras, mas boas: “Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”, a frase com que marcou seu desembarque do módulo lunar, é um exemplo de eficácia poética.)

Emoldurado pela escala visual limpa mas majestosa de Chazelle, o desempenho de Gosling resulta numa espécie de meditação sobre a voragem que leva um homem a romper barreiras. Faz lembrar o poema (aquele do “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”) do português Fernando Pessoa sobre o navegador Gil Eanes, que, em 1434, dobrou o Cabo Bojador, no norte da África, onde então se julgava ficar o fim do mundo. Ao contrário do que diz o poema, porém, Armstrong não teve de passar além da dor para dobrar o Bojador: dobrou-o por causa dela, e para deixá-la, afinal, do lado de lá.

Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2018, edição nº 2604

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