Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Nova tradução de ‘Rei Lear’ ilumina obra-prima monumental de Shakespeare

Título expõe as tormentas do poder e da natureza humana como nenhuma outra obra literária jamais foi capaz de fazer

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 24 jul 2020, 11h31 - Publicado em 24 jul 2020, 06h00

No terceiro ato de Rei Lear, a monumental peça de William Shakespeare (1564-1616), o velho monarca encontra-se exposto à fúria dos elementos, enquanto uma tormenta assola impiedosamente a paisagem. Rechaçado por duas filhas, Goneril e Regan, por elas escorraçado humilhantemente, Lear lança sua revolta contra a própria natureza: “O vento, a chuva, o raio não são minhas filhas! Não vos culpo, elementos, dessa ingratidão!”. Com essas palavras que o aproximam de um desses seres míticos, ancestrais, capazes de falar com os mais fundamentais princípios da natureza, o velho Lear começa finalmente a tomar consciência de sua condição: perdera o poder real ao dividir o reino entre suas filhas e entregara tudo às pérfidas Goneril e Regan, renegando a herdeira que realmente o amava e respeitava, Cordélia. De nada adiantara implorar para que não enlouquecesse: por seus erros e pelas tramas de suas filhas más, “feiticeiras perversas”, Lear enfrentará o deserto da loucura, a tormenta da derrota e o abismo do aniquilamento total.

REI LEAR, de William Shakespeare (tradução de Lawrence Flores Pereira; Penguin Companhia; 320 páginas; 29,90 reais em e-book) (./.)

Essa é a história que já foi descrita por especialistas na obra do Bardo como “um colosso em meio a suas realizações”. É a peça que o mais famoso shakespeariano de nosso tempo, o crítico Harold Bloom, afirmou conter uma grandeza que transcendia a própria literatura. É a peça que o leitor brasileiro recebe, agora, em nova e impressionante tradução de Law­rence Flores Pereira — já premiado com o Jabuti por sua versão do Hamlet —, acompanhada de um alentado ensaio introdutório assinado pelo tradutor e pela filósofa Kathrin Rosenfield, além de excelente aparato de notas textuais que tornam a experiência da leitura do Rei Lear um aprendizado acessível, profundo e prazeroso.

A experiência de ler uma obra teatral é fundamentalmente distinta daquela fruição da encenação para a qual esses trabalhos são pensados originalmente. Nos palcos, já se vão mais de 400 anos que atores e diretores têm aportado ao texto de Shakespeare as mais diversas interpretações e sentidos, fazendo com que a riqueza infinita de tantas cenas ficasse marcada na memória de gerações. Foi assim que as montagens teatrais encontraram recursos diversos para comunicar a plateias distintas, em épocas e sociedades tão diferentes quanto a Londres seiscentista e o Brasil atual, o gênio criador de Shakespeare e suas visões para o drama daquele rei, pai e velho homem sofrido. Desde interpretações cristãs, que acentuavam uma possível redenção final, até a profunda marca deixada pelo diretor Peter Brook, em sua clássica peça de 1962, que aproximou o mundo desolado e hostil da peça de Shakespeare do teatro do absurdo de Samuel Beckett, a formidável linhagem de montagens atesta a excepcionalidade do Lear.

ATEMPORAL - William Shakespeare: o melhor tradutor da essência do homem. (The Art Archive/Corbis/Getty Images)

Mas o que pode ser obtido nas encenações com recursos teatrais ou cinematográficos — a intensidade emocional que aumenta à medida que a decadência física vai se impondo na versão de Ian Mckellen para a Royal Shakespeare Company; a modernidade audaciosa da versão em filme com Anthony Hopkins para a Amazon Prime — precisa ser obtido pelo tradutor apenas com a letra do texto. Esse é o desafio enfrentado e vencido por Law­rence Flores Pereira: o texto revela ao leitor sua grandeza quase inabarcável, fazendo emergir um Lear poderoso e desmedido, mas também frágil e atormentado; humano em sua emotividade exacerbada e errática, mas revigorado por sua transformação em face dos descalabros que sofreu.

É assim que as palavras de Lear, na cena inicial, quando decide renunciar ao fardo do poder dividindo o reino entre as três filhas, expõem a natureza do homem contraditoriamente apegado ao poder, com retórica dissimulada e falsa: Lear aceita a bajulação de Goneril e Regan, e não é capaz de ver o amor real e íntimo de Cordélia. Suscetível, acaba por humilhar a filha que mais amava e que, assim julgava, agora traía sua afeição. O reino dividido; o rei sem poder, exce­to nas aparências; as relações familiares corrompidas — em poucas cenas e com uma linguagem que oscila da formalidade artificiosa dos elogios falsos das filhas mais velhas à vulgaridade agressiva com que Lear desonra Cordélia, há uma intensidade trágica condensada.

PUNGENTE - Hopkins e Florence Pugh, como Lear e Cordélia: cena antológica. (Ed Miller/Amazon Prime Video/.)

Envolvido pelo feitiço shakespeariano, o leitor percebe o erro de Lear, que logo será chamado de “velho frívolo” por Goneril, que trama junto à irmã Regan; é levado a testemunhar a profunda ignorância de si mesmo que caracteriza o rei — tanto que caberá ao Bobo dizer-lhe: “Não deveria ter ficado velho antes de ficar sábio”; e subitamente vê seus sentimentos oscilarem, da revolta com a injustiça praticada por Lear para a identificação com as injustiças a ele infligidas. Em meio à tormenta, testando os limites da sanidade, Lear pronuncia as palavras que revelam o doloroso caminho da tomada de consciência: “Quando nascemos, choramos por aportar a esse vasto palco de loucos”. Só após a loucura Lear é capaz de conhecer a si próprio.

Continua após a publicidade

A família, o amor, o poder: é a totalidade do mundo que se apresenta no Rei Lear. E se esse mundo parece puro desespero, deve-se lembrar da pungente lição de amor da filha Cordélia, que retorna ao reino para tentar reparar as injustiças, apesar de tudo o que ela própria sofrera. Leitor algum jamais poderá esquecer a humanidade profunda que Shakespeare conseguiu conceber no reencontro de Lear com Cordélia — uma humanidade tão atemporal, tão primordial e tão verdadeira que apenas nesta obra em toda a literatura universal ultrapassou tudo o que a linguagem é capaz de dizer. Afinal, com que palavras seria possível imaginar a dor de um pai que perdesse uma filha assim? Não há palavras, e por isso a cena de Lear carregando Cordélia até hoje só tem rival nas representações de Maria segurando o corpo do Cristo. Não sendo um deus, Lear urra — um grito humano que cada página de Shakespeare libera energicamente a todos os leitores.

Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.