“Shaun não é perfeito, mas é o nosso herói”, diz pai de ‘Good Doctor’
David Shore, criador da série, fala a VEJA sobre o sucesso do jovem médico autista e o compara a seu outro “filho” famoso, o Dr. House
Durante parte da vida, o canadense David Shore, de 60 anos, foi um discreto advogado corporativo. Ele estava à beira dos 30 quando decidiu trocar a tranquila Toronto pela agitada carreira de roteirista em Hollywood. Na nova encarnação, Shore inscreveria seu nome na elite da TV ao criar certo tipo valoroso de herói das séries: o médico dividido entre seus tormentos pessoais e a capacidade extraordinária de salvar vidas. Se fosse pai só do Dr. House, vivido pelo inglês Hugh Laurie na série homônima exibida por oito temporadas de grande sucesso entre 2004 e 2012, Shore já teria razões suficientes para acomodar-se sobre seus louros. Mas ele repete a façanha em The Good Doctor. Inspirada em uma produção coreana, a série, com o excelente Freddie Highmore na pele de um jovem cirurgião autista, caiu nas graças dos brasileiros: virou o carro-chefe internacional da plataforma Globoplay, colheu bons índices de audiência desde que chegou às noites de quinta-feira da Globo, há duas semanas — e suas duas temporadas acabam de estrear no canal pago Sony. Na entrevista a seguir, Shore fala a VEJA sobre os desafios para fazer de um autista um personagem tão pop — e o compara, claro, ao Dr. House.
House era sobre um médico sociopata, mas genial. The Good Doctor trata de um cirurgião brilhante com autismo. Por que o senhor aprecia personagens assim? Quando assisti ao piloto da série coreana que serviu de base para The Good Doctor, fiquei emocionado e inspirado pelo jovem médico Shaun Murphy. Decidi que precisava muito escrever para esse personagem. A medicina nos fornece situações fortes com que lidar na dramaturgia. “As pessoas estão morrendo, o que eles vão fazer?”, excita-se o espectador. Mas, na verdade, a medicina é só um pano de fundo para falar de pessoas extraordinárias.
Shaun Murphy e Gregory House têm traços em comum? Eles são muito diferentes, mas lidam com os mesmos problemas — e se questionam o tempo inteiro sobre o que é certo e o que é errado. No fundo, os dois nos colocam diante de dilemas éticos familiares a todos os seres humanos.
Há tantos médicos com transtornos mentais no mundo real? Tenho certeza de que sim. Não só na medicina, mas em todas as áreas profissionais existem pessoas com deficiências mentais ou que estão passando por transtornos e tormentos. Assim como Shaun, elas enfrentam grandes desafios. Conseguir emprego, encontrar alguém que lhes dê a chance de trabalhar, é um dos principais deles. Há muitos médicos por aí com autismo, diagnosticado ou não. Ficaria feliz se a série abrisse mais portas para eles.
Quais os desafios para fazer de um autista um tipo televisivo popular? Talvez a maior dificuldade fosse o fato de que havia poucos exemplos de personagens autistas na televisão. Parte de nosso esforço foi investigar como seria um retrato fiel e justo de uma pessoa nessa condição. Tivemos de lidar também, inevitavelmente, com as expectativas de que houvesse uma certa representatividade dessas pessoas na série. Mas pretender que Shaun fosse um herói de todos os autistas seria uma abordagem errada.
Por quê? As pessoas na comunidade autista têm muitas coisas em comum, mas também diferenças, como todo ser humano. E o modo mais franco de fazer um personagem assim é mostrar que ele é, acima de tudo, um indivíduo com dramas e personalidade únicos. Pesquisamos demais em busca do retrato mais honesto possível. Lemos livros científicos, assistimos a documentários e falamos com médicos, psicólogos — mas, sobretudo, escutamos pessoas autistas.
Um diferencial de The Good Doctor é dar ao espectador a sensação de ver o mundo como um autista. Por que essa preocupação com as filigranas sensoriais? Certamente é algo que eu considerava essencial desde o início do projeto. Não queria que as pessoas simplesmente vissem um autista na tela, mas que pudessem se identificar com ele e se colocassem no lugar de Shaun para poder entendê-lo e amá-lo. Ao mesmo tempo, queria que ele nos desafiasse, que dissesse coisas capazes de nos tirar da zona de conforto, para nos fazer pensar: “Ah, ele está certo, eu é que estou errado”. Isso é muito importante. Shaun não é perfeito, mas é o nosso herói, e ele tenta superar seus desafios com destemor. Queria que o público embarcasse nessa jornada de superação dentro de sua mente.
Como as pessoas com autismo e seus familiares têm reagido à série? É muito gratificante. Havia certo nervosismo por parte da comunidade autista antes de a série ir ao ar, mas as respostas foram emocionantes e acolhedoras. Infelizmente, existe muita conversa sobre diversidade na televisão, mas a realidade dos autistas nunca tinha sido abordada o suficiente. Eu sabia do risco de não agradar a todos, mas me sinto bem por ter feito um personagem como Shaun. Tenho muito orgulho dele.
Shaun enfrenta percalços como a falta de confiança dos pacientes e o desprezo dos colegas de profissão. Autistas que tentam trabalhar de forma regular vivem problemas semelhantes? Sim, absolutamente. Os autistas enfrentam preconceitos, suposições, julgamentos injustos e prematuros. Todos nós, em alguma medida, encaramos desafios e somos julgados o tempo todo. Mas é um processo mais extremo para Shaun, sem dúvida. E o fato de ele não ficar para baixo nunca é uma das coisas mais inspiradoras para mim.
Como “pai” dos personagens, seu coração bate mais forte por House ou Shaun Murphy? Amo os dois. Eles são como meus filhos. Mas Shaun tem a vantagem de ser uma pessoa mais otimista. Ele exibe uma atitude mais saudável que a de House para viver a vida, definitivamente.
Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652