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Eram os jagunços astronautas?

A literatura fantástica deveria integrar o cânone brasileiro

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 7 dez 2018, 07h00 - Publicado em 7 dez 2018, 07h00

A gênese de uma grande obra literária é um mistério que a crítica jamais saberá decifrar plenamente — e o testemunho dos próprios autores às vezes gera mais perguntas do que respostas. Alguns anos após a publicação de Sagarana, Guimarães Rosa escreveu uma carta a João Condé, explicando a gestação de seus contos. Primeiro, decidira escrever uma série de “histórias adultas da carochinha”; só depois pusera-se a pensar na localização dos relatos. “Podia ser Barbacena, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que escolhi.” Rosa, como sabemos, voltou ao chão real de sua aldeia para engendrar alguns dos momentos mais luminosos e universais de nossa literatura; a mim, contudo, sempre me fascinaram aquelas duas misteriosas divagações: Neo-Baratária e o espaço astral. “Baratária” talvez seja uma referência a certa ilha imaginosa que Sancho Pança falsamente recebe como feudo em Dom Quixote — uma travessura erudita, portanto, como tantas que Rosa gostava de urdir. A alusão cosmonáutica também tem jeito de ironia ilustrativa: parece significar, apenas, que o autor fez um longo périplo mental antes de retornar ao sertão mineiro. Não pretendo sugerir, portanto, que os jagunços fossem astronautas; mas certas brincadeiras revelam processos profundos, que só se deixam mostrar de forma oblíqua. Como argumenta Braulio Tavares no interessantíssimo livro APulp Fiction” de Guimarães Rosa (Marca de Fantasia, 2008), há indícios de que Rosa apreciasse mesmo a literatura fantástica e especulativa, incluindo a ficção científica e outros gêneros que a crítica brasileira tradicionalmente desprezou.

Os primeiros contos publicados pelo demiurgo de Cordisburgo parecem inspirados nos relatos de terror e aventura de Edgar Allan Poe: é o caso de O Mistério de Highmore Hall, peripécia gótica situada num castelo escocês, e Chronos kai Anagke, em que um jovem desnor­tea­do assiste a uma partida de xadrez entre o Tempo e o Destino. É fácil concluir que, nesses relatos juvenis, Rosa ainda não fosse, de fato, Rosa. Prefiro, contudo, uma interpretação mais simpática aos monstros e astronautas: para apossar-­se do sertão “que era mais seu”, Rosa teve de transitar por outros universos sob a égide da pura imaginação. Os liames do insólito e do maravilhoso, aliás, estendem-se também por sua obra madura, como bem demonstra a leitura de Um Moço Muito Branco, A Menina de Lá e A Terceira Margem do Rio.

Jorge Luis Borges disse, certa vez, que a maior parte da literatura universal é fantástica, enquanto o realismo seria um hábito recente e talvez passageiro. Longe de mim nutrir pelo realismo literário a mesma antipatia alar­dea­da pelo escritor argentino; mas já passa da hora de incorporarmos a fantasia e seus congêneres ao cânone brasileiro. Pois, além de todas as funções miméticas que lhe são atribuídas, a boa literatura pode desempenhar um papel menos evidente, porém não menos crucial: explorar as fronteiras da imaginação humana.

Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612

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