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Presença indígena nas universidades cresce e amplia resistência cultural, diz especialista

Avanço educacional reforça saberes tradicionais e enfrenta desigualdades, apagamento histórico e destruição de modos de vida dos povos originários

Por Gersem Baniwa*, para The Conversation
15 Maio 2025, 14h31


Os povos indígenas são sociedades autóctones das Américas que desenvolveram e continuam desenvolvendo civilizações complexas, autônomas e altamente sustentáveis. Suas histórias não acabaram, porque continuam vivas e cada vez mais enraizadas na sociedade de hoje. As identidades, línguas, culturas, saberes, fazeres e valores indígenas têm conservado suas singularidades em meio ao mundo globalizado, sem isolamento.

A trajetória milenar das sociedades indígenas é marcada por modos de vida e de existências que transcendem dimensões materiais e estruturais, alcançando esferas cognitivas, éticas, políticas e espirituais. No cerne desses modos de vida, encontram-se a defesa da autonomia e da alteridade radical, a afirmação da humanidade diversa, a valorização das culturas e saberes e a compreensão da interdependência comunitária como condição fundamental da existência.

Todas as formas de conhecimentos têm valor

O conceito de autonomia, entendido como a capacidade de autodeterminação, se entrelaça profundamente com a alteridade radical, ou seja, o reconhecimento da existência do outro como legítimo em sua diferença. A alteridade radical nos convida a deslocar perspectivas hegemônicas e reconhecer a diversidade como elemento fundante da humanidade.

A ontologia é um ramo da filosofia que investiga a natureza da realidade e da existência. Já a epistemologia é o estudo do conhecimento, que busca entender como o conhecimento é adquirido, suas fontes e limites. A busca por equivalência ontológica e epistêmica implica reconhecer que todas as formas de conhecimentos e existências possuem valor, e que nenhuma deve ser subjugada por visões dominantes.

Garantir a continuidade histórica dessas epistemologias outras e de seus sujeitos exige resistência ativa, dentro das instituições de ensino e em práticas comunitárias que preservam e renovam esses saberes. As conexões cognitivas e políticas entre diferentes movimentos sociais ampliam a potência das existências e resistências locais para o enfrentamento das desigualdades, do racismo, do epistemicídio (que é a destruição de conhecimentos e culturas de povos não-ocidentais) e da necropolítica (uma forma de política que consiste no poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer).

Nossa casa comum

A interdependência existencial é um princípio fundamental para a construção de novas formas de ser, saber, fazer, viver e existir, além de afirmar que a sobrevivência e o florescimento da humanidade dependem de relações coletivas baseadas na cooperação, na solidariedade, na complementariedade, no respeito e na reciprocidade. Esse conceito fortalece a compreensão de que todas as formas de vida estão conectadas orgânica e sistemicamente.

As lutas e resistências cognitivas, éticas, políticas e espirituais dos povos indígenas são caminhos essenciais para a afirmação de uma humanidade diversa, plural, solidária e interdependente, e de uma natureza cósmica comum, uma casa comum.

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Reconhecer e valorizar a pluralidade de existências e epistemologias é um ato de resistência e de construção de futuros possíveis. A autonomia e a alteridade radical, a valorização das culturas e dos saberes e o reconhecimento da interdependência são estratégias fundamentais para garantir que todos possam existir e viver com dignidade, em um mundo onde a diferença não seja apenas tolerada, mas celebrada, promovida e vivida.

Crise da modernidade

Desde o Iluminismo, a modernidade se estende sobre a crença na razão como força motriz do progresso, capaz de libertar a humanidade da ignorância. O avanço tecnológico e a racionalização das relações sociais foram revelados como sinais inequívocos de uma civilização em ascensão. Contudo, essa narrativa não leva em conta as contradições inerentes ao próprio projeto moderno.

Enquanto a ciência e a tecnologia proporcionam avanços inegáveis na saúde, na comunicação e na produção, também foram instrumentalizadas para a exploração econômica, o controle, a dominação e a subjugação de seres humanos e a destruição da natureza. Como argumenta Walter Benjamin, o progresso carrega consigo uma “tempestade” de destruição e exclusão, tornando visível a barbárie que caminha junto com a modernidade.

O negacionismo científico, climático e histórico não apenas refuta conhecimentos estabelecidos, mas também mina a possibilidade de uma sociedade baseada no esclarecimento e na responsabilidade coletiva. Essa postura revela uma profunda crise da modernidade, que em vez de ser instrumento de emancipação humana, torna-se refém de interesses políticos, econômicos e de fundamentalismos religiosos.

Ciências indígenas

Os saberes indígenas são resultados de milhares de anos de observação, experimentação e de vivência, em processos contínuos de validação e de resolutividade coletiva cujo laboratório é a natureza. São, portanto, conhecimentos teóricos e práticos com suas lógicas, racionalidades e modos próprios de produção, validação, disseminação e aplicação.

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Esses conhecimentos garantiram milhares de anos de desenvolvimento de sociedades social, política, econômica e tecnologicamente complexas e avançadas. Os rituais e as cerimônias que podem durar dias ou semanas são momentos fortes de celebração da vida e da existência transbordante de sentido, de alegria, de afeto e de realização existencial.

Os sistemas ou regimes de conhecimentos indígenas podem ser caracterizadas por meio de algumas dimensões ontológicas e epistêmicas próprias. A primeira dimensão ontológica é a relação ou lugar da humanidade na natureza, fundamentada numa relação de interdependência, de complementariedade e de solidariedade sistêmica e orgânica.

O ser humano é parte integrante e (inter)dependente da natureza. Não há separação ontológica entre homem e natureza, ou cultura e natureza. Não há saberes ou conhecimentos fora da natureza. Os povos indígenas não estão vivem fora da natureza, muito menos se julgam superiores a ela. Isso não significa que sejam reféns da natureza. Significa que interdependem dentro do sistema cósmico, onde todos dependem de todos, todos cuidam de todos.

A ideia de organicidade ontológica da natureza cósmica nos leva a outro conceito importante que é o de incompletude ontológica da natureza e da vida. As histórias de origem dos povos indígenas em geral indicam que o mundo surgiu de vazios ou escuridões que foram sendo povoados por forças e seres em permanente tensões, conflitos e predações, que continuam.

As doenças são resultados dos desequilíbrios, desajustes, disputas e tensões entre os seres espíritos da natureza cósmica. Curar doença, portanto, é pacificar, manejar e equilibrar os espíritos em disputa. A incompletude ontológica como parte constitutiva e natural do mundo exerce uma função existencial importante na vida, porque estabelece a necessidade dos seres, humanos e não humanos, cumprirem suas tarefas com respeito, reciprocidade, solidariedade e comunicação cósmica.

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Por isso, os povos indígenas preservam a natureza porque estão ligados constitutivamente a ela. A relação existencial com a natureza é uma condição de vida e de existência.

Nessa relação não há um salvador, um curador, um árbitro ou um ser superior que unilateralmente julga e decide. As sociedades indígenas não criaram crenças em seres superiores ou supremos a quem se pode creditar ou terceirizar soluções de problemas da vida.

As curas de doenças e de outros males existentes no mundo são resolvidas pelos próprios seres do mundo. Deste modo, não é suficiente somente diálogos e entendimentos entre os humanos. É necessário envolver os demais sujeitos da natureza cósmica. Para evitar problemas climáticos, é preciso diálogo com os espíritos dos trovões, dos raios, das chuvas, dos ventos, dos rios, dos mares, dos lagos, das florestas e assim por diante.

Natureza cósmica

Segundo as ontologias indígenas, a natureza cósmica é um conjunto único, complexo e diverso, com seres biológicos e espirituais, com consciências, vontades e agências próprias, mas, interconectados e interdependentes, considerando a totalidade do mundo cósmico. É importante destacar a agencialidade de todos os seres existentes, humanos e não humanos, inclusive, os “objetos” ou “coisas” inanimados, como pedras, praias e objetos construídos, como casa, roça, canoa, remo e outros.

Essa relação ontológica e epistemológica com a natureza cósmica tem sido pilar da resistência cultural e étnica ao longo da colonização. Se hoje vivem quase dois milhões de indígenas sobreviventes no Brasil, segundo dados do IBGE de 2022, é porque alguma coisa (ou muita coisa) dos povos indígenas nunca foi colonizado. Isso significa que boa parte dos saberes indígenas, felizmente, nunca foi atingida pela colonização da ciência e da política.

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Nos últimos anos, surgiram novas esperanças no surgimento das ideias de interculturalidade, mas o mundo colonial rapidamente neutralizou suas possibilidades, limitando seu sentido prático e teórico a manifestações exteriores como dança, música, pintura corporal e outras performances e atividades culturais, blindando o conceito da crítica política e epistêmica. A força contagiosa do pensamento colonial é tão grande que desgasta e esvazia ou desvia os sentidos e significados de conceitos aparentemente inovadores.

Diálogos necessários

Diante disso vão sendo criados outros conceitos e categorias na corrida para fugir das armadilhas do pensamento colonial. Para além da ideia de interculturalidade — que não consegue mais dar conta das nossas realidades e perspectivas históricas, ontológicas e epistemológicas —, começamos a trabalhar com os conceitos de pluriepistemicidades (pluralismo epistêmico), interepistemicidades (diálogos epistêmicos, diálogos entre diferentes epistemologias) e intercientificidade (diálogo entre ciências, diálogos entre diferentes ciências).

Tudo isso para fugir das perspectivas da colonização, da colonialidade, do colonialismo, do imperialismo, do capitalismo. Esses novos conceitos nos animam a pensar a grande diversidade epistêmica de nossos povos e do nosso planeta.

Deste modo, a modernidade não pode ser vista como unidimensional ou inquestionável. O desafio contemporâneo consiste em compensar a modernidade a partir de uma perspectiva crítica, que reconheça suas contradições e limitações e busque alternativas ao modelo hegemônico.

Nessa busca planetária por seu destino, os povos indígenas podem contribuir com suas experiências, saberes e modos de vida milenares e ancestrais, que continuam guiando seus caminhos com sabedoria e dignidade. Os povos indígenas continuam existindo, afirmando, reafirmando e muitas vezes (re)elaborando e (re)significando seus saberes, suas identidades, línguas, culturas, tradições, histórias e espiritualidades.

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Os povos indígenas são diferentes. Essa é sua condição humana de existir. Pensam de jeitos diferentes. Agem de modos diferentes. Vivem de modos diferentes.

*Gersem Baniwa, Professor do Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília (UnB)

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