Estudo que refuta o “gene gay” é um chamado à tolerância
Teses preconceituosas caem por terra diante de pesquisa com quase 500.000 pessoas que indica a homossexualidade como resultado de vários fatores
A ideia era simplista demais para ser levada a sério como constatação científica de algo complexo — o comportamento homossexual. Baseado na investigação genética de quarenta famílias, um estudo de 1993 alardeou que certo gene, o Xq28, determinaria, sozinho e de modo integral, a atração de uma pessoa por alguém do mesmo sexo. Embora frequentemente contestado, o trabalho costumava amparar posturas preconceituosas contra os gays, dando margem a propostas como a de terapias para a “cura” do que seria uma “falha genética”.
Se havia alguma dúvida sobre a fragilidade dessa tese que atravessou décadas, ela acaba de ser demolida. Uma nova pesquisa, recém-publicada pela prestigiosa revista americana Science, refuta de maneira assertiva a ideia da existência de um “gene gay”. Realizado por cientistas americanos e europeus, o estudo levou em consideração a análise genética de mais de 477 000 pessoas dos EUA e do Reino Unido, a partir de um questionário sobre seus hábitos sexuais. Entre os participantes, 26 000 afirmaram ter se relacionado com indivíduos do mesmo sexo. Os pesquisadores compararam os resultados da observação do DNA com a orientação sexual de cada um dos voluntários e assim concluíram que a genética está longe de contar a história inteira — uma enormidade de outros fatores entraria em jogo. Um exemplo que ilustra a multifatorialidade que dita muitas de nossas características é a altura: apesar de ela em parte depender da informação genética presente no DNA, a nutrição — relacionada ao meio em que se vive — e os níveis hormonais afetam profundamente o desenvolvimento físico.
Em suas análises, os pesquisadores conseguiram localizar cinco genes que exercem influência sobre a orientação sexual, mas a expectativa é que haja centenas ou milhares de regiões do DNA que pesem em tal comportamento. Elas seriam responsáveis por algo entre 8% e 25% da manifestação homossexual. De qualquer forma, a genética está sujeita a muitas variáveis. A epigenética, área que vem ganhando fôlego nos últimos anos, teoriza que o funcionamento dos genes pode ser alterado por diversos elementos externos ao DNA. Tome-se o caso do câncer: nos EUA, um censo de 2010 revelou que somente de 5% a 10% dos tumores têm origem genética. O resto é decorrente de atitudes individuais — como fumar, ingerir bebidas alcoólicas em excesso etc.
Naturalmente, o estudo levado a cabo com quase 500 000 pessoas deveria funcionar como um chamamento a maior tolerância diante da homossexualidade. Apesar disso, contudo, é difícil avaliar qual será o seu impacto na sociedade. “Acredito que a maior parte das pessoas mais conservadoras, que apoiam bobagens como terapias que visam a transformar gays em heterossexuais, não é muito racional e não liga muito para a ciência. Então, não acho que o nosso estudo os afetará”, disse a VEJA Brendan Zietsch, psicólogo da Universidade de Queensland, na Austrália, e coautor do trabalho. “O importante agora é discutir o preconceito em si, e não as causas da homossexualidade. Pode ser que se passem 200 anos sem que saibamos o que resulta nessa orientação sexual. Por enquanto, devemos falar da homofobia e resolver esse problema logo”, acredita Jairo Bouer, psiquiatra especialista em sexualidade.
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651