Brasil refaz por navio rota da escravidão até Angola como gesto de reparação histórica
Iniciativa de pesquisadores da Unesp faz parte de programa de reconhecimento e memória que envolve espiritualidade, turismo afroreferenciado e ações educativas

Poucos países no mundo têm uma relação tão forte e ao mesmo tempo desconhecida com o Brasil como Angola. As duas nações são como se fossem irmãs separadas no nascimento e que só começaram se conhecer depois de adultas. Neste caso específico, depois de mais de 450 anos de uma história que remonta ao início da escravização de africanos para o Brasil.
Com o objetivo de resgatar as relações históricas, culturais, religiosas, sociais, políticas, diplomáticas e econômicas entre os dois países, uma equipe multidisciplinar de pesquisadores negros da UNESP, liderada pelo antropólogo Dagoberto José Fonseca, criou o programa “Reconhecer, Reparar, Religar para Seguir: memória e história dos nossos – mundo Atlântico e em terra firme”, que se inspira em estudos e reflexões conjuntas entre brasileiros e angolanos sobre as relações ancestrais dos países para promover diversas ações focadas na memória e na reparação pelos séculos de escravização do povo negro no Brasil.
Uma das ações do programa é o projeto “A Grande Travessia: o retorno, o reencontro, o reconhecimento, a reparação” que objetiva ser uma simbólica e emblemática viagem de navio entre os portos de Santos, Rio de Janeiro, Salvador e Luanda, capital de Angola, com partida prevista para dezembro de 2025.
A viagem contará com uma cerimônia no Cais do Valongo, na região portuária do Rio de Janeiro, local histórico conhecido por ter sido a principal porta de entrada dos escravizados no Brasil. Em seguida partirá para cruzar o Oceano Atlântico, no caminho inverso do que fizeram os escravizados, entre os séculos XVII ao XIX.
Origens da iniciativa
O projeto se inspira nos estudos, nas reflexões, nas inúmeras publicações, nas viagens, mas em especial nas vozes das religiões africanas registradas pela equipe de pesquisadores do projeto no Porto de Luanda, anos atrás, e nos diálogos entre o professor Dagoberto José Fonseca e o atual ministro da Cultura de Angola, Filipe Zau.
A inspiração para o projeto veio também a partir dos estudos de pós-doutoramento “Nas marolas do Atlântico: interpretações de Angola, da África, do Brasil e de Portugal”, realizado entre 2008 e 2009 sob a supervisão da professora Neusa Maria Mendes Gusmão na Faculdade de Educação na Universidade de Campinas (Unicamp), e que contou com apoio institucional do ex-Ministro do Ensino Superior de Angola, Antonio Miguel André.
Outro estudo importante e fundamental para a criação do programa foi a tese “Conceitos motores, conceitos mutantis – a Antropologia e o Brasil são dinâmicos”, lançada em 2014. Ambos os estudos desenvolvidos resultaram no livro Um povo, duas nações: Angola e Brasil – o mundo Bantu no Atlântico publicado em 2024. Uma longa história que já dura 23 anos, desde quando o professor Dagoberto iniciou os estudos sobre as relações entre Angola e Brasil.
Quatro projetos
O programa estrutura-se em quatro projetos interligados pela travessia entre os dois lados do Oceano Atlântico. Os dois primeiros focam na preservação, restauração, acesso e difusão dos acervos dos Arquivos Nacionais de Angola e do Brasil, relativos ao colonialismo europeu, tráfico transatlântico e escravização de africanos entre os séculos XVI e XIX.
Eles se conectam ao terceiro e quarto projetos, que visam reconhecer e reparar as vítimas desse processo, promovendo reconciliação histórica. Entre as ações, destacam-se os cruzeiros marítimos entre portos do Brasil e da África, começando pelo Brasil e Angola, resgatando o direito ao sepultamento digno das milhares de pessoas africanas mortas durante a travessia atlântica e pelo sistema escravista.
A execução do programa exige esforços pessoais, sociais, científicos, financeiros, políticos e diplomáticos interligados. O projeto “A Grande Travessia: o retorno, o reencontro, o reconhecimento, a reparação” é o mais conhecido, pelos investimentos já realizados e pelos que serão realizados no futuro por pessoas, instituições, governos e iniciativa privada de diversos países a serem envolvidos, a começar por Brasil e Angola, que têm laços diplomáticos desde o século XVI. Não por acaso, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, em 1975. Em 2025, ao completar 50 anos de independência, Angola incluirá esse projeto nas suas comemorações oficiais.
Um inédito caminho de volta depois de 175 anos de história
As relações entre Brasil e Angola remontam ao século XVI e perduram até hoje. Estima-se que 60% das pessoas escravizadas no Brasil vieram de lá. Eles chegaram trazendo conhecimentos em agricultura, metalurgia, criação e cuidado com animais. Sabedoria fundamental para a economia brasileira e para a nossa cultura.
Reconhecer, reparar e religar é uma ação conjunta entre brasileiros e angolanos. Baseada nos direitos à memória, cultura, história, verdade, cidadania internacional africana e mais que tudo, a um sepultamento digno, como pilares de justiça reparatória, restaurativa e redistributiva.
Os projetos voltados aos cruzeiros marítimos A Grande Travessia e Boaventura: de Costa a Costa – Experiência Afroreferenciada já tiveram uma experiência piloto em 2024, quando o navio Grandiosa, da MSC, saiu de Santos e passou por Salvador e teve destino final Maceió, capital de Alagoas. Essa experiência afro-referenciada marcou, pela primeira vez na história, o fato de que após 170 anos de história um grupo de pessoas livres e de maioria negra, fez parte do caminho de volta pelas águas do Atlântico. Com direito a uma visita ao Quilombo dos Palmares, que fica no município de União dos Palmares, em Alagoas.
As rotas dos dois próximos projetos são distintas. “A Grande Travessia” partirá de Santos, parando para a cerimônia no Cais do Valongo, e de lá seguirá para Salvador e, finalmente, Luanda. Já o projeto “Boaventura” repetirá a viagem de 2024, saindo do porto de Santos, passando por Salvador e indo até Maceió, de onde os passageiros poderão e subir a Serra da Barriga até o Quilombo dos Palmares.
Seleção dos passageiros
A metodologia adotada para a participação no projeto, enquanto passageiro nos navios, será terá duas modalidades distintas. Uma será pela via dos editais públicos que serão elaborados para a participação nos cursos híbridos e respeitando as cotas de representação por estados da federação apontados em cada um deles. A segunda pela seleção de pares a partir de critérios objetivos elencados para a indicação ao Conselho Gestor do Projeto.
O governo de Portugal também está sendo convidado a contribuir com a “Grande Travessia”, financiando e pagando parte dos custos ou todo o custo do projeto, justamente porque ele foi o grande beneficiário de todo o crime de lesa humanidade ocorrido no tráfico transatlântico envolvendo Angola e Brasil. Atualmente os custos estimados para a execução do projeto estão estimados em cerca de R$ 50 milhões. A ideia é que nenhuma pessoa, especialmente as pretas, pagarão pela viagem.
Já o projeto “Boaventura” desde o início foi pensado de forma que todas as pessoas pagarão pelas viagens pela costa brasileira, mas terão como base também o turismo afro referenciado, o turismo de memória.
O que é o turismo de memória
O programa “Reconhecer, Reparar, Religar para Seguir” articula pesquisa científica, documental e turística com atividades de ensino, extensão, entretenimento, negócios, lazer e gestão acadêmica. Também abrange o turismo de memória, de cultura, de investigação e de reparação do presente, do passado e do futuro, com base no afro turismo, com alimentação afro referenciada, visando a preparação e formação do público para o reencontro, com a África.
O programa ainda possui fundamentos teóricos, jurídicos e políticos sustentados por tratados e legislações nacionais e internacionais. Destacam-se: o Memorando de Entendimento Brasil-Angolapara o turismo sustentável; o Decreto 12.278/2024, que instituía Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana; programas como Rotas Negras, Caminhos Amefricanos, o Primeira Infância Antirracista e a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola.
Política de reparação
O programa conecta-se às políticas de reparação discutidas pelo Banco do Brasil, pelo Grupo de Trabalho do Pacto pela Igualdade Racialpela articulação com 34 estatais no Pacto pela Diversidade, Equidade e Inclusão. Está alicerçado em documentos da ONU, como a Declaração de Durban, a Declaração Universal dos DireitosHumanos e a Constituição Brasileira, com foco em justiça para os antepassados e os afetados no presente, combatendo neocolonialismos e racismos.
Enfim, o programa visa reparar, por meio da espiritualidade e ritualística afro-brasileira, a memória das pessoas africanas que morreram em alto mar sem sepultura. Envolvendo nessa travessia o reencontro com as tradições bantu e religiões afro-brasileiras, os Estados de Angola e do Brasil patrocinam as devidas e justas reparações por séculos de colonialismo, tráfico humano, escravismo e expropriação de terras e territórios.
*Dagoberto José Fonseca, Professor Associado do Departamento de Ciências Sociais, UNESP Araraquara/SP, Universidade Estadual Paulista (Unesp); *Rosicler Lemos da Silva, Docente do Departamento de Serviço Social – UNESP Franca/SP, Universidade Estadual Paulista (Unesp); *Tahina Tátila da Silva, Doutoranda em Serviço Social – UNESP Franca/SP, Universidade Estadual Paulista (Unesp) e *Tatiane Pereira de Souza, Doutora em Ciências Sociais, UNESP Araraquara/SP, Universidade Estadual Paulista (Unesp)